a vida cultural no brasil-colôniA

por Arilda Riani

“E dali avistamos homens que andavam pela praia. (…). Pardos, nus, sem coisa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas (…) E Nicolau Coelho lhes fez sinal que pousassem os arcos. E eles os depuseram. Mas não pôde deles haver fala nem entendimento. (Carta do Descobrimento” )

A Primeira Missa: A pintura tem autoria de Victor Meirelles.

É com muita honra e orgulho que Literatura é Bom pra Vista volta a contar com a preciosa colaboração da professora e doutora em Língua Portuguesa e Literatura, Arilda Riani. Ela volta a escrever em nosso blog/fanpage e a nos ensinar mais, mais e mais ainda sobre tudo o que sabe sobre Literaturas e muito mais. Obrigada, professora-doutora Arilda Riani por voltar. A senhora tornará Literatura é  Bom pra Vista  e seus leitores mais informados e deliciados com seus escritos. Seja muito, muito bem-vinda de volta. No artigo a seguir, ela nos ensinará sobre a vida cultural no Brasil-Colônia. Ótima Leitura!

Arilda Riani: “O reino continua no firme propósito de esconder tudo que acontece na colônia”.

Ao aportar em abril de 1500 na costa de uma terra desconhecida, que o olhar cúpido do capitão Pero Vaz de Caminha detalha na longa carta a D. Manuel, o português não tinha ideia de que acabara de pisar em um continente de proporção incomensurável, rico em jazidas minerais, cercado por florestas, com aproximadamente um milhão de falantes de uma língua ágrafa, o tupi, que se sobreporá, ainda que provisoriamente, à língua de D. Dinis, moderna, consolidada e de cultura. Na “Carta do Descobrimento”, Caminha sugere que evangelizar esse povo seria de boa iniciativa por lhe parecer inocente e simples. Mas, sem braços para ocupar a terra e com a intenção de livrá-la da cobiça de corsários e forasteiros, o rei de Portugal só inicia a posse em 1531, com as Capitanias Hereditárias, uma iniciativa que procura na escravidão dos povos originários e de traficados do continente africano a mão de obra de que precisa… Porém, a joia da coroa, a América Portuguesa, é colocada sob sigilo absoluto por três séculos.

 Apesar de todo ocultamento, a colônia desenvolve uma fase de relativa intensidade cultural com Pe. José de Anchieta e sua extensa obra: poemas, hinários, peças teatrais com propósito doutrinário, cartas à Cia. de Jesus dando ciência da beleza e dos costumes do povo, escreve a gramática “A arte da língua mais usada na costa do Brasil”, um manual para facilitar a comunicação nas trocas mercantilistas, fruto da observação dos fenômenos linguísticos que codifica a partir de códigos mnemotécnicos. Nela estão retratados a diversidade e os rudimentos da língua geral falada pelos paulistas e do nheengatu, a língua geral do Norte ou amazônica. Esta “Gramática” se torna um instrumento de comunicação oral que vigora ao lado da língua portuguesa até o século XVIII e nela interfere com um manancial de empréstimos,passando a ser considerada um adstrato do português. Amoldada e adaptada à sintaxe clássica de gramáticos latinos, a “Gramática” do Pe. Anchieta sistematiza e simplifica o tupi falado por índios, negros, portugueses e seus descendentes tornando-se um poderoso instrumento de intercomunicação e de propaganda religiosa. Ainda no século XVI, o cronista Gabriel Soares de Sousa descreve a fauna, a flora e a pronúncia dos povos em “Notícia do Brasil e Tratado Descritivo do Brasil”, enquanto Frei Vicente de Salvador se preocupara com a “História do Brasil”.

O padre jesuíta José de Anchieta

O pouco que se conhece da América Portuguesa no século XVII é produto de narrativas de viajantes que descrevem suas aventuras na terra frequentemente assaltada para o contrabando do pau-brasil. Em 1640, o holandês Maurício de Nassau ocupa o Nordeste e tenta instalar uma imprensa no Recife, mas o proprietário da máquina falece, frustrando a iniciativa. Pe. Antônio Vieira escreve o “Sermão da Sexagésima” (“Os Sermões”) trazendo a defesa dos direitos dos povos originários, um dos primeiros textos escritos no Brasil com ideias avançadas para a época; Bento Teixeira traz “Prosopopeia”, uma tentativa de epopeias sobre a terra; Botelho de Oliveira escreve “A Ilha da Maré” com os primeiros indícios do sentimento nativista; Gregório de Matos Guerra tira das vozes indígenas e africanas um vocabulário particularmente diferenciado para imprimi-los na sua veia cômica como recurso de expressão.

A primeira notícia que se tem de uma tipografia na colônia é de 1706 em Recife, Província de Pernambuco, fechada por “Carta Régia” de Portugal para sequestrar tudo que foi impresso e notificar os proprietários e oficiais para não imprimirem livros ou papeis avulsos.

1703 –  Proíbe-se a saída, por empréstimo, de livros da biblioteca dos Pe. Oratorianos do Recife, “a maior e melhor de Pernambuco.

 

No setecentismo, quando as poucas escolas são destinadas a filhos de portugueses, a população em geral continua na ignorância. O “Conselho Ultramarino”, órgão criado em 1642 para administrar as colônias portuguesas, autoriza em 1730 funcionar o “Colégio da Mãe de Deus” em Belém, a primeira da Província do Grão Pará. A corte continua a se manifestar contra qualquer iniciativa de ordem cultural na colônia e em 1703 proíbe a saída e o empréstimo de livros daBiblioteca dos Pe. Oratorianos do Recife”, a maior e melhor da Província de Pernambuco. Esta congregação mantém uma escola que recebe em 1755 carta de “Provisão D’El Rey com permissão para que seus alunos ingressem na Universidade de Coimbra sem exame de seleção. O governador geral Francisco de Castro Morais apoia a instalação de uma oficina tipográfica naquela cidade, imediatamente fechada com recomendação expressa de não imprimir livros ou papeis avulsos; em 1724, o vice-rei D. Vasco Fernandes patrocina a fundação da primeira sociedade literária do Brasil, sugestivamente nomeada “Academia Brasílica dos Esquecidos”, em atividade até 1725, que acolhe entre os fundadores o historiador Sebastião da Rocha Pita, autor de “História da América Portuguesa”, e o cronista Frei Jaboatão; em Salvador.

 A “Sociedade Brasileira dos Acadêmicos Renascidos é inaugurada em 6 de junho de 1759 com a pretensão de fazer ressurgir a “Academia Brasílica dos Esquecidos” e de escrever sobre a história da América Portuguesa. A iniciativa não tem outro destino senão ser fechada um dia após a inauguração.

Gomes Freire, o primeiro conde de Bobadela.

No Rio de Janeiro, em 1736 o Governador Gomes Freire autoriza o funcionamento de uma oficina tipográfica e a abertura da “Academia dos Felizes”, ambas sumariamente fechadas por Carta Régia. A poesia de Domingos Caldas Barbosa traz indícios de uma literatura brasileira em formação ao agregar o sentimento da terra em modinhas e lundus com termos usuais no Brasil, de enorme sucesso em Portugal. O reino continua no firme propósito de esconder tudo que acontece na colônia e fecha a oficina tipográfica de Antônio Isidoro da Fonseca, editor da primeira obra possivelmente impressa no Brasil “Relação da Entrada que Fez o Excelentíssimo e Reverendíssimo Sr. Dr. Antônio do Desterro Malheiro. Bispo do Rio de Janeiro, em o Primeiro Dia deste Presente Ano de 1747”.

Tribo indígena retratada pelo pintor alemão Rugendas

A partir de um dado momento, os portugueses chegam em número mais crescente, trazendo uma variedade de hábitos linguísticos regionais que começam a se enfrentar com os hábitos linguísticos dos povos da colônia. Como consequência, a diglossia se acentua entre os falantes. Sem escolas, o registro de maior prestígio fica restrito à classe mais favorecida, enquanto o povo permanece fiel à língua geral ou brasílica, adotada pelos portugueses por mais de dois séculos como língua comum com diferentes substratos: língua dos jesuítas, língua dos colonos (brancos, mamelucos, índios e escravos) e língua dos tupis e seus grupos aldeados. Esta língua, capitaneado pela língua tupi ou “língua boa”, forma um tipo particular de bilinguismo que se consolida com um manancial de empréstimos na fonética, na sintaxe e no léxico a formar novos modos de expressão e a exercer enorme influência sobre a língua trazida pelos portugueses, uma língua que não reproduz mais a de Portugal. A língua “jesuítica” se comporta como uma segunda língua, uma língua paralela que se estende até meados do século XVIII, uma evidência que incomodar a corte portuguesa, levando o Marquês de Pombal a iniciar um longo processo de aculturação pela língua com a inauguração de centenas de estabelecimentos educacionais na colônia. A língua portuguesa passa então a ser aprendida nas escolas. A política restritiva do Marquês de Pombal provoca o apagamento da língua geral, mas não consegue apagar a enorme contribuição lexical que deixou, os modos de expressão, as locuções e os modismos. No final do século, Basílio de Gama escreve o poema “O Uraguai” com a exaltação da coragem do índio e sua índole guerreira; Santa Rita Durão aparece com a temática da terra em um texto laudatário, “Caramuru”, sem compromisso com um país em formação. O ideário da Revolução Francesa agita os poetas e Inconfidentes como Cláudio Manuel da Costa, com o poema “Vila Rica”, e Silva Alvarenga, redator do estatuto da “Sociedade Literária do Rio de Janeiro”, ambos traduzindo nas suas obras forte sentimento de brasilidade. Ao contrário da vida breve das antigas academias, a “Sociedade Literária do Rio de Janeiro”, fundada em 1776, funciona até o final do século; Antônio de Morais Silva fecha o século ao publicar o “Dicionário da Língua Portuguesa” (“Dicionário Morais”, como ficou conhecido, de autoria do Pe. D. Rafael Bluteau), o primeiro a tratar de algumas composições gramaticais viciosas em uso na colônia, como o emprego livre do pronome oblíquo, uma insurreição do povo da terra que nenhuma política educacional conseguiu apagar.

Embora o emaranhado de informações a envolver a vida cultural do Brasil-Colônia, os pesquisadores encontram nesses primeiros séculos alguns vestígios que os levarão a identificar a procura de uma identidade e de uma língua que expresse a sociedade e a literatura brasileira. Esse ideal será concretizado nos séculos subsequentes com os escritores românticos e modernistas na rica prosa voltada para a oralidade.

Nota: Subsídios retirados de uma Agenda Cultural da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro.

Imagens: Internet

Uma consideração sobre “a vida cultural no brasil-colôniA”

  1. Um excelente artigo. 

    Educativo, explicativo e muito interessante sobre a origem e os caminhos da língua portuguesa. 

    Parabéns, Professora e Doutora, Arilda Riani, pelo belíssimo trabalho de pesquisa. 

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