POESIA TEM DIA, MAS PODE TODO DIA

Cecília M.: “Perdoa-me folha seca”.

Março acaba hoje, 31, e Literatura é bom pra vista quer fechar o mês com uma poesia bacana. Afinal, é em março que se comemora a poesia. Escolheu-se o dia 21, em 1999, durante a XXX Conferência da Unesco, para homenagear poemas, poesias, poetas, a diversidade das línguas. Se bem que dia de poesia é todo dia. E como o outono está entre nós, Literatura é bom pra vista compartilha com uma bela poesia, intitulada Canção de Outuno, de Cecília Meirelles (1901-1964) sobre a estação:

Perdoa-me, folha seca
Não posso cuidar de ti
Vim para amar neste mundo
E até do amor me perdi.

De que serviu tecer flores
Pelas areias do chão 
Se havia gente dormindo 
Sobre o próprio coração?

E não pude levantá-la
Choro pelo que não fiz
E pela minha fraqueza
É que sou triste e infeliz
Perdoa-me, folha seca
Meus olhos sem força estão
Velando e rogando a aqueles 
Que não se levantarão…

Tu és a folha de outono 
Voante pelo jardim
Deixo-te a minha saudade
– A melhor parte de mim
Certa de que tudo é vão
Que tudo é menos que o vento
Menos que as folhas do chão…

Cecília Meirelles: “Tu és folha de outono”.

OS NOMES DO “COISA-RUIM” ou um dedimdiprosa com GUIMARÃES ROSA


Neste artigo para Literatura é bom pra vista, nossa articulista Arilda Riani nos delicia com nomes em “mineirês”, acompanhada do insuperável G. Rosa. Arilda Riani é professora e doutora em Letras pela Uerj

A toda hora encontramos postagens nas redes sociais sobre o “mineirês”, um hábito linguístico da nobre nação das Gerais. E não tem povo mais cuidadoso para um dedimdiprosa, que pode durar horas entre longas pausas meditando uma resposta ou para fugir “de banda” dos efeitos negativos de uma palavra sagrada, mágica, enfeitiçante, cujo nome ele entende ser vedado pronunciar, em respeito à crença popular.

A natureza da linguagem e o poder mágico da palavra ampliam significados que apontam na direção de novos limites mentais, como em expressões com poderes sobrenaturais Abre-te Sésamo, que ao ser pronunciada por Ali Babá e seus ladrões abre a porta de uma gruta; Abracadabra, palavra cabalística que os antigos atribuíam vários poderes; Schazam,  grito de guerra trazendo as primeiras letras dos nomes Salomão, Hércules, Atlas, Zeus, Aquiles e Mercúrio, que pode transformar o falante em um Super-Herói; Pirlimpimpim, pó mágico das fadas que aspirado transporta em viagens ao mundo da fantasia personagens do Sítio do Pica-Pau Amarelo, obra de Monteiro Lobato.

Em obediência a essa crença, nem sob tortura o cidadão mineiro pronuncia palavras como desgraça, sutilmente substituída por “disgrama” ou “despraça”; diabo, morfético, dentre outras, um tabu linguístico cuja função revela clara manifestação de fraqueza do falante.

Mas, em determinadas ocasiões, ele recorre sem cerimônia a palavras ou expressões de desagravo de manifesta coragem, como o arrenegado, o cão, o cramunhão, o indivíduo, o galhardo (chifrudo), o sujo, o tisnado, o coxo, o coisa-ruim.  

Guimarães Rosa nos encanta com seu Riobaldo que desfala

A partir da palavra medo, anagrama de demo, o mineiro Guimarães Rosa se apossa de uma linguagem tipicamente regional, enigmática e condensada para construir a personalidade do jagunço Riobaldo Tatarana, o único herói e contador da sua própria saga em Grande Sertão: Veredas. Apoiado na sentença “quem muito evita, se convive”, de um tal Aristides,  e temente ao poder oculto da palavra, Riobaldo desfala o nome do O que Diga, para evitar que “o Tal” se manifeste ao ouvir chamar pelo nome.

E se justifica: […] “tantos vi que aprendi. Rincha-Mãe, Sangue-d’Outro, o Muitos-Beiços, o Rasga-em-Baixo, Faca-Fria, o Fancho-Bode, um Treciziano, o Azinhavre (p.11), […] “o Arrenegado, o Cão, o Cramunhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé-de-Pato, o Sujo, o Homem, o Tisnado, o Coxo, o Temba, o Azarape, o Coisa-Ruim, o Maffarro, o Pé-Preto, o Canho, o Dubá-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que-diga, O – que – nunca – se – ri, o Sem – Gracejos… (p.33) Na fala do povo, esses nomes proibidos são encontrados sob deformações vocabulares, como, diá (p. 163 ), diacho, satã, satão, santão, santanás ou “santo”Anás, e o mais temido de todos, o Barzabu (p. 326) ao invés de “Belzebu”.

Riobaldo: “T´arrenego jávaitarde”

No seu prosear, Riobaldo vê o homem das trevas até na forma reduzida “arre”, da expressão elíptica “t’arrenego, demônio”:[] “Arre, que agora, visível, o Pindó e a mulher se habituaram de nele bater, de pouquinho em pouquim foram criando nisso um prazer feio de diversão” (p.14).

Na língua do povo, há o tinhoso, o condenado, o excomungado, o espírito-das-trevas, o-lá-debaixo, o capeta, o capiroto, o exu, o cujo, o-da-carapuça-vermelha (sem alusão a determinada agremiação da esquerda),e o tal-coisa-que-anda-de-noite, que muitos juram ver transitar livremente no planalto espalhando o terror para agradar a seus súditos e insensível ao sofrimento de milhares de famílias.

 Mais recente é o surgimento de um tabu ortográfico com o poder de eriçar as cãs dos nossos mais famosos gramáticos e filólogos, e manter em grades o pobre cidadão brasileiro que ouse iniciar determinada palavra com a letra “g”. Para fugir da cana, agora é cravar um “j” na excomungada, da expressão “jávaitarde”, aglutinada assim mesmo, coisa que nem nunca mestre Riobaldo Tatarana ousaria fazer!

a sofrida e talentosa camille claudel

A bela Camille

“A imaginação, o sentimento, o novo, o imprevisto, que surge do espírito desenvolvido e proibido para eles, cabeças fechadas, cérebros obtusos, eternamente negados à luz”. Camille Claudel (1864-1963).

Literatura é bom pra vista há muito vem querendo trazer a seus leitores um pouco sobre a vida sofrida da escultora Camille Claudel.  Camille, a bela mulher que sofreu pela ação má de parentes, de seu mestre (e também amante), por ser mulher e mulher de talento. Então ela precisava ser impedida de ter vontade e desejos próprios. 

Camille Claudel (E) em seu atelier

Camille Claudel passou 30 anos confinada em um hospício, onde morreu. Foi o irmão quem a internou compulsoriamente. Março, mês da mulher, indo embora, outono chegando, confinamento que segue. Então decidiu-se por Camille, que sofreu, mas fez de sua arte, seu próprio destino e sua profissão de fé.

Sakountala, em, mármore, de C. Claudel

Por isto a comovente história da grandiosa artista Camille Claudel merece ser conhecida. Ela e seu talento que, juntos, unem paixão, poder de criação em sua obra. Camille foi uma escultora sublime. Desde criança tinha fascínio por pedra e terra para dar vida às suas obras e a seu talento. Mas seu talento foi ofuscado e pisoteado pela família: tiram-lhe a pensão que recebia do pai. Ficou sem verba própria para financiar suas esculturas. Mas Camille não desistiu de sua arte. Contudo se viu obrigada a viver  na miséria, de favores, vestida com andrajos. A mãe e o irmão tomaram o controle das finanças e conspiravam contra sua arte, tendo conseguido mantê-la num hospício por 30 anos. Era permitido na época.

La Valse, de Camille Claudel

Por volta de 1884, começaria seus estudos com Auguste Rodin, um dos mais respeitados e reconhecidos escultores da época. Vinte quatro anos mais velho, Rodin  ((1840-1917) fica deslumbrado com a beleza e o talento precoce da pupila.  Apaixonam-se:   Camille torna-se modelo, assistente, amante e rival de Rodin, que lhe promete casamento. Mas Rodin era casado. A família dela desaprova e passa a odiá-la ainda mais.  Camille começa a se sobressair em sua arte e Rodin não suporta ver o talento da bela Camille sendo reconhecido.  

Auguste Rodin

Pressionada cada vez mais, passando necessidades, Camille Claudel, em 1905, parece ter começado a desenvolver um transtorno mental, diagnosticado como esquizofrenia. Foi internada `contra a vontade em um hospício pelo irmão Paul Claudel, que diziam, tinha inveja e raiva do talento da irmã. Ofuscada por Rodin e maltratada pela família, em especial pelo irmão, Camille  ganhou um museu só dela, que vale a visita virtual: o MCC (http://www.museecamilleclaudel.fr/).

Paul Claudel

O acervo abriga desde a primeira obra da escultora, até seus últimos trabalhos em 1905, antes de ser internada no hospício  compulsoriamente.

O filme Camille Claudel (França, 1988)  relata a vida da escultora. Conta com a direção de Bruno Nuytten e a participação de Isabelle Adjani como Camille e Gérard Depardieu como Rodin.

SOBRE O ADEUS: MORTE, LUTO E PANDEMIA NO BRASIL

Anderson Moraes de Castro e Silva é um dos articulistas de Literatura é bom pra vista. Doutor em Ciências Sociais pela UERJ, é também Tecnologista em Propriedade Industrial do Instituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) e professor adjunto de Propriedade Intelectual Ética e Responsabilidade Social da Universidade Estadual da Zona Oeste, no Rio de Janeiro.
 

Todos os dias, em contextos distintos e com propósitos diferenciados, nos despedimos de pessoas com as quais convivemos. Tais despedidas, além de se alternarem em relação aos acontecimentos que as cercam, também se modificam quanto à temporalidade – “vou ali e já volto” ou “vou tentar a vida em outro país”-, e a intensidade emocional demandadas – mera atividade cotidiana, viagem, serviço militar, internação hospitalar, prisão ou morte, por exemplo. Pode ser um tchau meramente protocolar ou uma vivência indescritivelmente sentimental, a depender do registro afetivo acionado e do motivo que encerra temporária, ou definitivamente, esses encontros habituais.

Para além da diversidade de fatos e emoções envolvidos, a expressão adeus provavelmente será usada pela maioria de nós nessas ocasiões. O “adeus” é etimologicamente derivado da devoção cristã do colonizador português. Antes disso, contudo,  derivou-se do cristianismo que predominou culturalmente na Europa medieval enquanto ideal de modelo ético a ser buscado pelos medievos em suas condutas. Aliás, segundo os dicionários, a origem dessa expressão encontrar-se-ia na contração ou em corruptelas da expressão “entrego-te a Deus”, “encomendo-te a Deus”, “a Deus te recomendo” etc.

O médico e sociólogo polonês Norbert Elias

Em comum, apesar da diversidade de sentenças existentes e apontadas como prováveis matrizes da expressão adeus, uma certeza se impõe: essas orações ressaltavam a existência do sagrado. “Há Deus!”. Afinal, nossos antepassados entregavam, encomendavam e recomendavam seus mortos à divindade cristã. Tal expressão, portanto, nasce eivada de simbologia, religiosidade e fé. Na atualidade, embora o processo de secularização da expressão “adeus” seja uma realidade no Ocidente Moderno, alguns rituais ainda lhe preservam o sentido original, em especial, as exéquias.

As exéquias ou as cerimônias fúnebres de adeus encerram nos familiares, amigos e conhecidos do falecido as homenagens póstumas e iniciam o período de luto, que será experimentado de modo particular por cada um dos que conviveram com o morto. Ao longo dos anos, essas cerimônias se transformaram bastante, encurtando e limitando o itinerário do cortejo fúnebre. Rarearam as procissões a pé com o caixão carregado pelos homens da família e os cortejos em veículos pelo bairro: a última viagem.

Brasil: mais de 200 mil mortos pela Covid 19

As velas e o ato de velar também foram suprimidas do ambiente doméstico. O corpo foi retirado do interior da residência, cenário da “boa morte”, onde o moribundo agonizava diante dos familiares, cercado de carinho e no aconchego do lar.  Já em nossos dias, o último suspiro foi refrigerado e tecnologicamente inovado nos CTIs e UTIs equipados com todo tipo de máquina, mas sem o calor humano. Os vivos se afastaram dos mortos, ou, como diz o sociólogo Norbert Elias (19897-1990): “Os outros morrem, eu não”.[1]

A carne que será dada aos vermes, o cadáver, conta hoje com cuidados similares aos dedicados às modelos profissionais: roupas novas, adorno, unhas pintadas, perfume, maquiagem e cabelos cuidadosamente ajeitados, e toda sorte de preparação desenvolvida na esfera da tanatopraxia. O desfile derradeiro tenta ser estiloso, moderno e inodoro. Deve transmitir vivacidade e estilo, afastando por completo a morte do morto, que dever parecer repousar em paz. Mas o desfile, assim como as demais produções do mundo fashion, foi feito para durar poucos minutos e se encerrar triunfalmente com o adeus final. Como advertiu Elias, “podemos considerar parte de nossa tarefa fazer com que o fim, a despedida dos seres humanos, quando chegar, seja tão fácil e agradável quanto possível para os outros e para nós mesmos.”[2]

N. Elias: “Os outros morrem, eu não”.

Mas esquecemos de combinar isso com a pandemia global que varre o mundo desde fevereiro do ano passado. No Brasil, no dia em que escrevo o presente texto, 264.325 brasileiros não retornariam mais ao convívio familiar, totalizando por hora o saldo de óbitos acumulados em razão do coronavírus. Milhares de brasileiros cujos familiares, amigos, colegas de trabalho e demais conhecidos não puderam sequer homenagear e se despedir de seus entes queridos. Partiram sem ter quem lhes acariciasse a fronte ou segurasse as mãos, muitos foram sepultados sem honras, velas, choros ou rezas, em alguns caso, em valas coletivas. A pandemia desestruturou a assepsia dos ritos fúnebres “humanizados”, reconduzindo a morte ao papel de protagonista no ato derradeiro.

Para os que ficam por mais uns dias, a sensação de dor se junta ao vazio de um ciclo inconcluso, salientando a falta de um adeus não dito, prolongando ad infinitum um luto que há de ser somatizado ou sublimado. Curiosamente, observa-se aqui e acolá uma tendência de sacralização do adeus. Seria a pandemia um ponto de inflexão do cristianismo no Ocidente Moderno? Quem viver, verá.

Para saber mais sobre a morte e o ato de morrer: Elias, Norbert. A solidão dos Moribundos, seguido de, Envelhecer e Morrer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, pag.7.


[1] Elias, Norbert. A solidão dos Moribundos, seguido de, Envelhecer e Morrer. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001, pag.7.

[2] Idem, p. 7.

SOBRE MNEMOSINE, A DEUSA DA MEMÓRIA  E SOBRE A NOSSA MEMÓRIA

Mnemosine

Segundo a mitologia grega, Mnemosine  era deusa da memória e da lembrança.  Descendia de Urano — o céu —  e Gaia, a terra.  A titânia era filha de uma primeira geração divina, geração surgida no tempo original, onde ficaria o passado mais longínquo e que teria sido a geração de todos nós.  

A palavra mnemônico se relaciona à memória, à lembrança:  à Mnemosine. De acordo com o mito, foi a deusa quem descobriu o poder da memória, nomeando  vários objetos e criando conceitos para que os mortais conversassem sem brigar e pudessem entender.  Por isto é também considerada como aquela que tudo sabe e tudo lembra, sendo a criadora da linguagem. A importância da deusa da Memória era tamanha para os gregos que na obra Teogonia, de Hesíodo (sobre a origem dos deuses), a imortal é não só citada, como seu nome liga-se ao termo grego mimnéskein, que significa lembrar-se.

Mnemosine apaixonou-se por Zeus, o deus dos deuses, conseguindo atrair seus amor e atenção com seu exímio talento de contadora de histórias. O pai dos deuses foi seduzido pela deusa da memória durante nove dias consecutivos.  Meses depois, Mnemosine daria luz às nove musas, também conhecidas como filhas da memória ou musas protetoras das artes, ciências e letras. Seus nomes são: Calliope, Thalia, Melpomene, Euterpe, Polymnia, Clio, Terpsichore, Urania e Erato (vamos falar delas oportunamente, em Literatura é bom pra vista).

As filhas do casal de deuses também tinham por função presidir as diversas formas do pensamento: sabedoria, eloqüência, persuasão, história, matemática, astronomia, sendo invocadas pelos poetas. A própria Teogonia se inicia com uma invocação às nove musas.

Mas seria graças ao poder que lhe concedia  Mnemosine que a palavra quase cantada do poeta, ecoaria  por todo o universo, fincando-se na nossa memória.  Mãe e condutora das musas, a deusa da linguagem seria a responsável pela revelação e conhecimento do mundo, por intermédio da memória, sendo auxiliada pelo canto envolvente das filhas. Revelação no sentido de trazer, pela memória,  o tempo original (recordar e resgatar o tempo original) ao tempo da vida ordinária, a fim de que esta não se perca. Mas, ao contrário, revigore-se, fortificada  pela memória. É a memória que forja em nós exemplos a seguir, histórias a perpetuar, modelos a cultuar.

Antepassados, tradições nos tornaram o que somos. O papel da memória, contudo, é mais do que reviver o passado. É nos tornar dignos de nós mesmos, olhando o passado e avaliando o que merece ser revisto ou não. Mantido ou não.  Mnemosine nos impede de esquecer quem somos, de onde viemos, além de nos ajudar com sua arte de contar histórias a sabermos onde queremos e como queremos chegar.

O futuro não existe. É o presente misturado ao passado que nos torna capaz de construí-lo. O lugar mnemônico seria, então, o lugar da nossa imortalidade,  já que vive  em nossos filhos, netos; nas histórias que compartilhamos, nos hábitos que tivemos e na memória imortal que deixamos. É esta memória  que compartilhamos que se imortaliza na língua que falamos, nas culturas que dividimos, nos nossos sentimentos coletivos. É, então, esta nossa memória imortal que nos faz melhores  ao nos conceder o poder de não repetir o que não deve ser repetido e a engendrar outras memórias para o futuro. Que, repita-se, não existe. Mas está a nossa espera para existir.

Não é a memória o lugar da retenção do conhecimento, da aprendizagem? Não é a memória o lugar onde se inicia a elaboração do conhecimento científico? A memória liga o presente ao passado, a fim de que partamos para o futuro.

SÁTIRAS, ODES, EPÍSTOLAS E ÉPODOS EM HORÁCIO

Advogada e professora de Português, Latim e Literatura, Elza Mello é articulista de Literatura é bom pra vista e
segue nos ensinando sobre o poeta Horácio.

Virgílio, Horácio e Vário na casa de Mecenas. Pintura de Charles François Jalabert (1819)

Neste artigo, trataremos um pouco sobre Odes e Sátiras, Epístolas e Épodos em Horácio. Aproveito também para me desculpar pela ausência nos meses anteriores. Fato que se deu por motivo de doença.

E o que são odes?

As odes (também chamadas de hinos) são o conjunto entre a poesia e a música, a melodia e a métrica entrelaçadas em forma de um canto no qual pode refletir muitas emoções, desde heróico e alegre, até fúnebre e misericordioso. Chegando a se tornar futuramente uma poesia rimada com objetivos nobres, como homenagens a figuras ilustres ou como uma sublime, mas respeitosa dedicatória em um funeral.

Odes, em resumo, são poemas líricos.

As odes, em Horácio, são referência à pátria, aos governantes, aos deuses, as amadas, aos costumes, à sociedade, a nós, aos homens.

Como exemplo de Ode mais conhecida de Horácio temos que citar o poema “Carpe diem” em sua tradução, ainda que seja muito citado por outros não podemos deixar também de fazê-lo. Sua beleza simples e escrita direta o fez se perpetuar nos anos. Vamos à Ode!

“Colha o dia, confia o mínimo no amanhã
Não pergunte, saber é proibido, o fim que os deuses
darão a mim ou a você, Leuconoe, com os adivinhos da Babilônia
não brinque. É melhor apenas lidar com o que cruza o seu caminho
Se muitos invernos Jupiter te dará ou se este é o último,
que agora bate nas rochas da praia com as ondas do mar
Tirreno: seja sábio, beba seu vinho e para o curto prazo
reescale suas esperanças. Mesmo enquanto falamos, o tempo ciumento
está fugindo de nós. Colha o dia, confia o mínimo no amanhã.

“Carpe diem” é o poema que se propagou no espaço conforme dito acima. O escritor Horácio está longe de ser o poeta de um único poema, suas obras são vastas e merecedoras de leitura e apreciação.

Como já disse em outro artigo, quero conhecer o homem e suas obras, vou à fonte. Pesquiso em suas obras.

 E, ao beber na fonte, o leitor, toma conhecimento da obra literária, e não consegue, ou não deveria, a ela ficar indiferente. Formulará, ao certo, uma opinião favorável, ou não sobre o escritor e suas obras.

O fazer artístico, no nosso caso específico, a literatura, só completa sua função quando consegue, em seu interlocutor/leitor, despertar a sua manifestação de gosto.

O objeto de desejo do artista é o seu público, seu “consumidor”.

“Escrever, digo sempre, é abrir a porta sabendo que o resto da paisagem está no coração do leitor” (Bartolomeu Campos de Queiros).

Não obstante, a postura de um leitor não será condição para que o autor se prolongue no tempo e no espaço. Temos, aqui, leitor em seu sentido genérico. Será, sim, a qualidade de suas obras que o fará se propagar no tempo.

O tempo, este senhor, que não distancia o autor/obra de seus ouvintes ou leitores futuros. Mas que configura a infinitude ao artista quando de valor. Ratifica a sua grandiosidade.

O escritor Horácio conseguiu se perpetuar através de suas obras no tempo que guarda nele mesmo a morada dos imortais.

Se pudéssemos reproduzir a grande obra de Horácio na qual ele expressa sua atemporalidade, seria notável. Mas é impossível fazê-lo.

E cabe dizer que poesia não se repete, mas se lê mais de uma vez e tantas outras vezes quantas forem necessárias.

Então vejamos,

“Erigi um monumento mais duradouro que o bronze,
mais alto do que a régia construção das pirâmides
que nem a voraz chuva, nem o impetuoso Áquilo
nem a inumerável série dos anos,
nem a fuga do tempo poderão destruir.
Nem tudo de mim morrerá, de mim grande parte
escapará a Libitina: jovem para sempre crescerei
no louvor dos vindouros, enquanto o pontífice
com a tácita virgem subir ao Capitólio.
Dir-se-á de mim, onde o violento Áufido brama,
onde Dauno pobre em água sobre rústicos povos reinou,
que de origem humilde me tornei poderoso,
o primeiro a trazer o canto eólio aos metros itálicos.
Assume o orgulho que o mérito conquistou
e benévola cinge meus cabelos,
Melpómene, com o délfico louro.” -Horácio

Simplesmente encantador.

Contudo nem só de odes vivia o homem… ele também escrevia sátiras.

Suas sátiras “alfinetavam” seus objetos de escrita. Porém suas críticas amenizavam seus alvos.

E o que são sátiras?

Sátiras, segundo a definição do dicionário online, são uma “Construção poética, livre e repleta de ironia que se opõe aos costumes, ideias ou instituições da época (em questão). Construção poética com o propósito de criticar: sátira política (o que se encaixaria muito bem no momento que vivemos). Literatura, composição poética, cujo objetivo é ridicularizar vícios e/ou comportamentos. Crítica categórica e austera que, feita de maneira irônica, causa zombaria.”.

As sátiras estão mais ligadas à vida urbana e as loucuras dos homens que vivem nas cidades.

Como surgem as sátiras?

As sátiras aparecem da necessidade que o homem tem de ridicularizar e de questionar de forma jocosa alguns comportamentos de sua sociedade; essas advém do escárnio do comportamento individual ou de uma coletividade.

“Foi a literatura, contudo, que popularizou o estilo a partir da comédia, já no século V, em Atenas. Entre os autores de maior destaque está o grego Epicarmo, cujo texto cômico ironizava os intelectuais de seu tempo.

O apogeu, contudo, ocorreu em Roma, onde foi aperfeiçoada nos escritos de Gaio Lucílio, com sua poesia moral e recheada de filosofia.”

Uma boa sátira requer o total conhecimento do objeto que se deseja ironizar. Isto é de extrema importância.

É preciso ter conhecimento dos costumes a serem ironizados para que a obra literária passe veracidade. A verossimilhança na literatura é o que lhe confere a possibilidade de identificação do leitor e a obra.

Já as epístolas e épodos são outros recursos de escrita desse nosso escritor latino.

Epístolas nada mais são do que cartas, época em que muitas eram escritas. E algumas se publicadas seriam como verdadeiros livros-diários. Trocas ricas de pontos de vistas e verdades do coração de quem as escrevia.

As cartas, diferentes dos e-mails atuais, o que não posso me furtar a dizer, eram escritas sem a pressa da informação, mas na beleza dos detalhes.

“Epístola era um texto escrito em forma de carta, onde se expressam opiniões, manifestos, e discussões para além de questões ou interesses meramente pessoais ou utilitários, sem porém deixar o estilo formal, que combina amores objetivos e apelos subjetivos com o debate de cenas abrangentes e abstratos. As epístolas reunidas de um autor podem vir a ser publicadas devido a seu interesse histórico, literário, institucional ou documentário.”

Com certeza, nenhuma definição fria de um dicionário poderá ser fiel ao texto de uma epístola de Horácio.

As epístolas de nosso conhecido autor fugiam do tom comum, eram poesias sob a alcunha de cartas.

Seu estilo literário estava presente em suas epístolas. Vejamos uma parte de uma bela epístola de Horácio endereçada a um jovem:

“… não despertas para salvar a ti mesmo? Mas se não queres correr quando estás são, correrás quando fores hidrópico. E se, antes que raie o dia, não buscares um livro e um lume, senão aplicares tua alma aos estudos e às coisas honestas, insone serás atormentado ou pela inveja ou pelo amor. Por que te apressas em tirar aquilo que te fere o olho  mas, se alguma coisa te rói o espírito, adias para o ano a ocasião de curar-te?

Quem começa, já faz a metade da obra; resolve-te a ser sábio: começa.

Quem adia o momento de viver retamente faz como o camponês que, a fim de atravessar, espera a água do rio parar de correr; a água, porém, corre e correrá veloz por todo o tempo.

Entre a esperança e as preocupações, entre iras e temores, deves sempre julgar cada dia que surge como sendo o teu último dia: assim, o tempo que não esperavas ser-te-á mais grato.

Quando quiseres rir, vem visitar-me: ver-me-ás gordo e bem disposto, com a pele bem tratada, como um porco da grei de Epicuro!

Épodos : “Significado-  Copla lírica formada de dois versos desiguais. Nos coros de tragédias, parte lírica que se cantava depois da estrofe e da antístrofe. Nome dado a pequenos poemas satíricos de Horácio.”

(Epodos – Dicio, Dicionário Online de Português)

E como não poderia deixar de fazê-lo, me despeço com frases de encorajamento do nosso escritor Horácio.

“Somos como o galho que enverga, mas não se quebra diante dos problemas que se apresentam a nós em um ano tão cheio de infortúnios”.

“A adversidade desperta em nós capacidades que, em circunstâncias favoráveis, teriam ficado adormecida.”(alguém lembrou de 2020 ? ).

Horácio, escritor “ladino”, sabia que os caminhos possuem enfeites espinhosos e outros que não o são. Só a adversidade nos fortalece na crença em nossas possibilidades. E no reconhecimento de nossas fraquezas nos tornamos mais fortes.

Vamos descobrindo uma força desconhecida que só as adversidades têm a exata medida para fazer despertar o desejo de mudança e a capacidade de resiliência que palpita em cada um de nós.

Dito isso não poderia deixar de citar a Ode (endereçada a Licínio que alguns dizem ser cunhado de Mecenas):

Licínio, viverás de modo mais correto,

não afrontando sempre o mar alto nem, cauto,

ao temer tempestades, raspando em excesso

o iníquo litoral.

Todo aquele que a áurea mediania amar,

seguro, evitará as misérias de um teto

deteriorado; sóbrio, evitará palácio

para ser invejado.

Com mais frequência pelos ventos é agitado

pinheiro enorme, e torres elevadas tombam

com queda mais pesada, e as montanhas mais altas

os relâmpagos ferem.

Tem esperança na desgraça, na bonança

teme diversa sorte o bem disposto peito.

Os disformes invernos Júpiter nos traz,

ele mesmo os remove.

Se agora a situação mal está, não será

assim um dia; por vezes a calada Musa

Apolo acorda com a cítara, nem sempre

mantém o arco entesado.

Mostra-te corajoso e forte nos apertos;

do mesmo modo, quando o vento favorável

em excesso estiver, vais sabiamente as velas

túrgidas recolher

Somos fortes na resistência, vai passar, tenhamos fé.

E até o próximo artigo.

A MULHER NA LÍNGUA DO POVO

Por Arilda Riani (foto)

A MULHER NA LÍNGUA DO POVO

Por Arilda Riani

“O Senhor Deus formou a mulher da costela que tomara do homem (…)Teu desejo será para teu marido, e ele te dominará” (Gênesis).

“O que adoro em ti/ não é a tua inteligência”. (Manuel Bandeira)

           A língua é um código já pronto que recebemos ao nascer. Nela há um sistema de representação constituído por palavras e regras que se combinam em frases levando os indivíduos a usá-la como principal instrumento de comunicação. A linguagem é a base dessa atividade cultural na qual o falante se espelha para mostrar sua visão de mundo. Ao colocar a mulher como tirada da costela de Adão, a narrativa bíblica perpetuou a visão de um ser inferior, anulado, preparado pela família para se casar e assumir as funções de “rainha do lar”, “alma gêmea” de um “senhor”, um objeto sexual destituído de inteligência e de vontade própria! A forma da sociedade praticar esse olhar é desvalorizá-la culturalmente pela linguagem com termos e conotações negativas, um padrão formado por ideias pré-concebidas.

O achamento do Brasil nem havia acontecido, mas os feitos de Valéria Messalina no leito conjugal já corriam mundo e deixaram como herança ao vocabulário da língua portuguesa o termo “messalina”, mulher de costumes dissolutos, libertina, meretriz, devassa, que os tupiniquins imediatamente associaram a pistoleira, mulher-dama, rapariga, bisca, rameira e tantos outros nomes de igual conotação pejorativa e degradante!

Essa visão distorcida varia em função de fatores culturais, históricos, sociais, ideológicos e muitas vezes é exaltada em expressões como “Raimunda, feia de cara, mas boa de bunda”, cujo atributo físico de “mulher-tanajura” anula o pecado maior: a feiura. Vinícius de Moraes polemiza a questão quando escreve “que me perdoem as feias, mas beleza é fundamental”! Sem entrar na discussão do politicamente correto, a mulher feia se magra é a tísica, o bacalhau de porta de armazém; se gorda é a “baleia”! Em alguns “causos” de Guimarães Rosa esse ser amorfo e feio é associado à “fritura queimada”, aos “trovões da montanha”, não cabendo compaixão ao espelho que a reflete!

É uma visão da sociedade para quem a mulher, além de bonita e jovem, tem que ser sedutora, feiticeira, cigana, louraça! Tem que agradar aos olhos e ao paladar, daí compará-la a “peixão”, “banquete de trezentos talheres”, “docinho de coco”, “favo de mel”, “uva”, e até ao insosso “chuchuzinho”, associações que contribuem para que hábitos e julgamentos percorram caminhos particulares nada favoráveis à sua imagem, muitas vezes sem que ela se dê conta.

Ainda há pouco encontrávamos a “Amélia” no grupo das conformadas, mas, acreditem, aquela “mulher de verdade” resolveu dar um basta na dominação patriarcal e hoje prefere disputar altos cargos executivos e assumir pequenos trabalhos a ficar em casa “babando” seu opressor. Juntou-se às rebeldes colegas em gênero para enfrentar com alegria e destemor a dupla jornada, a menopausa, o filho rebelde, o tanque, o fogão, as despesas familiares, tudo sem abdicar do chopinho com amigas e amigos, o que a deixa em situação de igualdade com seu “senhor”. Mas, não se enganem. Apesar dos títulos universitários, talento e responsabilidade, a mulher continua vítima da visão preconceituosa da sociedade que credita o seu sucesso na profissão com a vulgar e lapidar expressão “subiu pela cama”!

Outro modo de se utilizar a linguagem para inferiorizar a mulher é “catalogá-la” pela faixa etária. Quando jovem é o “brotinho que não pode murchar como a flor”, a gatinha, acabrita, a lebre, a coelhinha pronta para o abate! Nessa condição, ela assume o romântico papel de “meu arco-iris”, “minha noite enluarada”! Ultrapassada a terrível fronteira dos trinta, esse serzinho antes crocante e apetitoso torna-se a balzaquiana, a solteirona, a coroa pronta para a vala. Na idade madura é o traste, a cascavel, a megera, a raposa velha!

Estas nomenclaturas estão hoje cada vez mais substituídas por vocábulos tirados à força física de animais possantes graças ao empoderamento que a mulher assumiu na sociedade ao batalhar para se tornar dona do seu destino. A solteirona é agora a pantera bem-sucedida, a tigrona, a leoa, nomes quem sabe saídos do inconsciente coletivo para mostrar sua natureza indomável.

Fafá de Belém e Xuxa Meneghel, dois nomes de peso na mídia, recentemente vieram a público para defender o direito de a mulher envelhecer com dignidade. Ambas se deixaram fotografar sem maquiagem e com os cabelos já grisalhos, o suficiente para despertar os patrulheiros de plantão em críticas e comentários dos mais ridículos e ofensivos. Fafá, sempre bem-humorada, afirmou que nunca teve problema de autoestima com o envelhecimento, nunca deixou de namorar e de beijar muuuito, e que “a tia” continua firme no jogo. Xuxa declarou-se bem resolvida com sua idade e aconselhou que aceitar a maturidade dói menos! Outra que deixou um depoimento corajoso sobre o envelhecimento e os desafios na carreira foi a talentosa atriz Cássia Kis, ao sustentar que as muitas rugas no seu rosto contam uma história de vida da qual não pode abrir mão!

Se me deixam falar, além dessa linguagem estar vinculada a um processo histórico-cultural, a mulher tem sua parcela de culpa. Enquanto os homens se unem e estabelecem regras de conquista, elas as aceitam com passividade e muita discordância entre seu próprio grupo. Ainda não perceberam que transitam invisíveis aos olhos da sociedade e que para mudar esse olhar míope faz-se indispensável a força, a determinação e a união. Unam-se! Exijam compartilhar o orgasmo com seus companheiros! Não se sujeitem a representar apenas um objeto de prazer.

No dia oito de março estaremos comemorando o “Dia Internacional da Mulher”, uma data representativa de algumas das suas conquistas, mas ainda há muita luta pela frente para que ela seja reconhecida e respeitada em todas as suas qualidades e defeitos.

A UNIÃO FAZ A FORÇA