Em comemoração ao aniversário de Lima Barreto a articulista de Literatura é bom pra vista, Arilda Riani, nos presenteia com um texto sobre o autor. Lima nasceu num 13 de maio de maio de 1881 e morreu em 1 de novembro de 1922. Riani percorre com profunda intimidade a obra do aniversariante pra nos contar sobre sua vida e talento. Viva Lima Barreto! O patrono e a razão de existir do blog/fanpage Literatura é bom pra vista.
EU SOU AFONSO HENRIQUES DE LIMA BARRETO
Por Arilda Riani* (foto)
A obra de ficção de Lima Barreto é marcada com passagens para mostrar sua origem e a dos seus antecedentes, como a família outrora abastada de São Gonçalo, na referência que faz ao cirurgião-mor Manuel Feliciano Pereira de Carvalho:
“… com a morte do chefe da casa, filhos e filhas se transportaram para a Corte […] “Um dos irmãos […] era cirurgião do Exército, tendo chegado a cirurgião-mor”. (Clara dos Anjos).
Com a família, vieram só os escravos libertos, dentre eles a avó materna de Lima, Leocádia da Conceição, da segunda geração de escravos, filha da moçambicana Maria da Conceição, traficada para o Brasil em navio negreiro. Essa bisavó aparece como “Mãe Quirina”, que viera
“… ainda rapariguinha para aqui, onde tivera por seu primeiro senhor os Carvalhos de São Gonçalo” (idem).
Dona Amália, a mãe de Lima, morta quando o escritor tinha seis anos, de tuberculose.
Amália Augusta Pereira, sua mãe, era uma mulata agregada da família de Manuel Feliciano Pereira de Carvalho, conhecido à época como “Pai da Cirurgia Brasileira”, justificando os rumores que a apontavam como sua neta:
“… foi com orgulho que verifiquei nada ter perdido das aquisições de meus avós. Desde que se desprenderam de Portugal e da África” (“Gonzaga de Sá, pág,40)
Quis o destino que seu nascimento tenha sido “em uma segunda-feira, 13 de maio de 1881 (“Diário Íntimo”), quando se comemora o Dia de Nossa Senhora dos Mártires e talvez este fato explique um pouco da sua vida de luta e sofrimento para se firmar como um romancista respeitado. Foi batizado na Igreja Matriz de Nossa Senhora da Glória em 13 outubro daquele mesmo ano, adotando a Santa como sua protetora. Por isso, quando se comemorava o Dia de Nossa Senhora da Glória não deixava de comparecer ao Outeiro da Glória para reverenciar sua madrinha e comprar medalhinhas da Santa, que guardou com carinho enquanto viveu.
A Igreja Matriz N. Sra. da Glória, no Rio de Janeiro, onde o escritor e jornalista Lima Barreto foi batizado
Lima Barreto orgulhava-se de ser filho legítimo do tipógrafo João Henriques de Lima Barreto e neto da antiga escrava Carlota Maria dos Anjos. Mas seu infortúnio começou bem cedo, na primeira infância:
“… quando eu tinha seis anos, meu pai enviuvou e nós morávamos em uma casa muito pobre na Rua do Riachuelo” (Feiras e Mafuás).
Com a morte da mãe, sentiu-se completamente abandonado, como se tudo não passasse de um complô contra ele. Não gostava de brincar, ia para o colégio taciturno, calado, e se,
“pelo recreio, o contágio obrigava-o a entregar-se à alegria e aos folguedos, bem cedo se arrependia, encolhia-se e sentava-se, vexado a um canto” (Clara dos Anjos).
Ainda aos sete anos, depois de perder a mãe, “fui acusado injustamente de furto, quando tive vontade de me matar” (Diário Íntimo.)
Com o pai, companheiro inseparável de toda sua existência, assistiu aos festejos da Abolição no dia do seu aniversário, 13 de maio, como sempre fazia questão de lembrar, no Largo do Paço, para testemunhar o acontecimento. Grande cronista que foi, Lima deixou no artigo “Maio”. e em várias páginas dispersas na sua obra, uma página emocionada sobre o que vira naquela data de 1889:
“Na minha lembrança desses acontecimentos, o edifício do antigo Paço, hoje repartição dos Telégrafos, fica muito alto; […] e de lá, de uma das janelas, eu vejo um homem que acena para o povo”.
“Afinal a lei foi assinada e, num segundo, todos aqueles milhares de pessoas o souberam. A princesa veio à janela. Foi uma ovação; palmas, acenos com lenços, vivas…
“Fazia sol e o dia estava claro. Jamais, na minha vida, vi tanta alegria. Era geral, era total; e os dias que se seguiram, dias de folganças e satisfação, deram-me uma visão da vida inteiramente de festa e harmonia”.
E continua com suas lembranças, agora da missa do Campo de São Cristóvão:
“Houve missa campal, no Campo de São Cristóvão. Eu fui também com meu pai; mas pouco me recordo dela, a não ser lembrar-me que, ao assisti-la, me vinha aos olhos a Primeira Missa, de Vitor Meireles. Era como se o Brasil tivesse sido descoberto outra vez… Houve o barulho de bandas de música, de bombas e girândolas, indispensável aos nossos regozijos; e houve também préstitos cívicos. Anjos despedaçando grilhões, alegorias toscas passaram lentamente pelas ruas. Constituíram-se estrados para baile populares; houve desfiles de batalhões de escolares e eu me lembro que vi a princesa imperial, na porta da atual Prefeitura, cercada dos filhos, assistindo àquela fieira de soldados a desfilar devagar. Devia ser de tarde, ao anoitecer”.
“Ela me parecia loura, muito loura, maternal, com um olhar doce e apiedado. Nunca mais a vi”.
“Eu tinha então sete anos e o cativeiro não me impressionava. Não imaginava o horror; não conhecia a sua injustiça. Eu me recordo, nunca conheci uma pessoa escrava. Criado no Rio de Janeiro, na cidade, onde já os escravos rareavam, faltava-me o conhecimento direto da vexatória instituição, para lhe sentir bem os aspectos hediondos.
Era bom saber se a alegria que trouxe à cidade a lei da abolição foi geral pelo país. Havia de ser, porque já tinha entrado na consciência de todos a injustiça originária da escravidão.
Sobre o impacto do 13 de maio na meninada do colégio da Rua do Resende, comenta:
“Quando fui para o colégio, um colégio público, à Rua do Resende, a alegria entre a criançada era grande. Nós não sabíamos o alcance da lei, mas a alegria ambiente nos havia tonado. A professora, Dona Teresa Pimentel do Amaral, uma senhora muito inteligente. A quem muito deve o meu espírito, creio que nos explicou a significação da cousa; mas com aquele feito mental de criança, só uma cousa me ficou: livre! livre
“Julgava que podíamos fazer tudo que quiséssemos; que dali em diante não havia mais limitação aos propósitos da nossa fantasia.
“Parece que essa convicção era geral na meninada, porquanto um colega meu, depois de um castigo, me disse: “Vou dizer a papai que não quero voltar mais ao colégio. Não somos todos livres?
E conservou desse 13 de maio uma lembrança curiosa:
“Dos jornais e folhetos distribuídos por aquela ocasião, eu me lembro de um pequeno jornal […] Estava bem impresso, tinha vinhetas elzevirianas, pequenos artigos e sonetos. Desses, dois eram dedicados a José do Patrocínio e o outro à princesa. Eu me lembro, foi a minha primeira emoção poética a leitura dele. Intitulava-se Princesa e Mãe e ainda tenho de memória um dos versos:
“Houve um tempo, senhora, há muito passado…”
Com estes enxertos de crônicas de um dos maiores escritores brasileiros, Afonso Henriques de Lima Barreto, o Patrono desta página, que nunca ocultou sua origem de “mulato, livre e pobre”, queremos deixar a cada um dos nossos leitores sua mensagem de esperança.
É hora de despertarmos para qualquer tipo de palavra crítica ou olhar medíocre que transporte injustiça e preconceito, venha de onde vier: Uma coisa do passado que envergonha o Brasil, uma nação jovem e multirracial.
*Professora e doutora em Literatura e Língua Portuguesa.
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