LER, LER E AINDA LER. É BOM PRA TUDO.

Em comemoração ao centenário de nascimento do educador e mestre Paulo Freire (1921-1997), Literatura é bom pra vista publica artigos e trechos escritor pelo professor. Exilado pela ditadura, Freire alfabetizou adultos pobres no interior do Nordeste, com seu método “De pé no chão também se aprende a ler”. Considerava a leitura, a alfabetização, a educação em si um ato político, solidário, coletivo e que jamais poderia ser neutro. O artigo de Freire que ora se publica “A Importância do Ato de Ler”, faz parte do livro do educador , com igual título, que pode ser baixado gratuitamente em https://cpers.com.br/paulo-freire-17-livros-para-baixar-em-pdf/.

A Importância do ato de ler*

“Rara tem sido a vez, ao longo de tantos anos de prática pedagógica, por isso política, em que me tenho permitido a tarefa de abrir, de inaugurar ou de encerrar encontros ou congressos. Aceitei fazê-la agora, da maneira porém menos formal possível. Aceitei vir aqui para falar um pouco da importância do ato de ler. Me parece indispensável, ao procurar falar de tal importância, dizer algo do momento mesmo em que me preparava para aqui estar hoje; dizer algo do processo em que me inseri enquanto ia escrevendo este texto que agora leio, processo que envolvia uma compreensão critica do ato de ler, que não se esgota na decodificação pura da palavra escrita ou da linguagem escrita, mas que se antecipa e se alonga na inteligência do mundo.

A leitura do mundo precede a leitura da palavra, daí que a posterior leitura desta não possa prescindir da continuidade da leitura daquele. Linguagem e realidade se prendem dinamicamente. A compreensão do texto a ser alcançada por sua leitura crítica implica a percepção das relações entre o texto e o contexto.

Ao ensaiar escrever sobre a importância do ato de ler, eu me senti levado – e até gostosamente – a “reler” momentos fundamentais de minha prática, guardados na memória, desde as experiências mais remotas de minha infância, de minha adolescência, de minha mocidade, em que a compreensão critica da importância do ato de ler se veio em mim constituindo. Ao ir escrevendo este texto, ia “tomando distância” dos diferentes momentos em que o ato de ler se veio dando na minha experiência existencial. Primeiro, a “leitura” do mundo, do pequeno mundo em que me movia; depois, a leitura da palavra que nem sempre, ao longo de minha escolarização, foi a leitura da “palavramundo”.

A retomada da infância distante, buscando a compreensão do meu ato de “ler” o mundo particular em que me movia – e até onde não sou traído pela memória -, me é absoluta-mente significativa. Neste esforço a que me vou entregando, re-crio, e revivo, no texto que escrevo, a experiência vivida no momento em que ainda não lia a palavra. Me vejo então na casa mediana em que nasci, no Recife, rodeada de árvores, algumas delas como se fossem gente, tal a intimidade entre nós – à sua sombra brincava e em seus galhos mais dóceis à minha altura eu me experimentava em riscos menores que me preparavam para riscos e aventuras maiores.

A velha casa, seus quartos, seu corredor, seu sótão, seu terraço – o sítio das avencas de minha mãe -, o quintal amplo em que se achava, tudo isso foi o meu primeiro mundo. Nele engatinhei, balbuciei, me pus de pé, andei, falei. Na verdade, aquele mundo especial se dava a mim como o mundo de minha atividade perceptiva, por isso mesmo como o mundo de minhas primeiras leituras. Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto – em cuja percepção rio experimentava e, quanto mais o fazia, mais aumentava a capacidade de perceber – se encarnavam numa série de coisas, de objetos, de sinais, cuja compreensão eu ia apreendendo no meu trato com eles nas minhas relações com meus irmãos mais velhos e com meus pais.

Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto se encarnavam no canto dos pássaros – o do sanhaçu, o do olha-pro-caminho-quem-vem, o do bem-te-vi, o do * Trabalho apresentado na abertura do Congresso Brasileiro de Leitura, realizado em Campinas, em novembro de 1981. sabiá; na dança das copas das árvores sopradas por fortes ventanias que anunciavam tempestades, trovões, relâmpagos; as águas da chuva brincando de geografia: inventando lagos, ilhas, rios, riachos. Os “textos”, as “palavras”, as “letras” daquele contexto se encarnavam também no assobio do vento, nas núvens do céu, nas suas cores, nos seus movimentos; na cor das folhagens, na forma das folhas, no cheiro das flores – das rosas, dos jasmins -, no corpo das árvores, na casca dos frutos. Na tonalidade diferente de cores de um mesmo fruto em momentos distintos: o verde da manga-espada verde, o verde da manga-espada inchada; o amarelo esverdeado da mesma manga amadurecendo, as pintas negras da manga mais além de madura. A relação entre estas cores, o desenvolvimento do fruto, a sua resistência à nossa manipulação e o seu gosto.

Foi nesse tempo, possivelmente, que eu, fazendo e vendo fazer, aprendi a significação da ação de amolegar. Daquele contexto faziam parte igualmente os animais: os gatos da família, a sua maneira manhosa de enroscar-se nas pernas da gente, o seu miado, de súplica ou de raiva; Jolí, o velho cachorro negro de meu pai, o seu mau humor toda vez que um dos gatos incautamente se aproximava demasiado do lugar em que se achava comendo e que era seu – “estado de espírito”, o de Joli, em tais momentos, completamente diferente do de quando quase desportivamente perseguia, acuava e matava um dos muitos timbus responsáveis pelo sumiço de gordas galinhas de minha avó. Daquele contexto – o do meu mundo imediato – fazia parte, por outro lado, o universo da linguagem dos mais velhos, expressando as suas crenças, os seus gostos, os seus receios, os seus valores. Tudo isso ligado a contextos mais amplos que o do meu mundo imediato e de cuja existência eu nós podia sequer suspeitar.

No esforço de re-tomar a infância distante, a que já me referi, buscando a compreensão do meu ato de ler o mundo particular em que me movia, permitam-me repetir, re-crio, re-vivo, no texto que escrevo, a experiência vivida no momento em que ainda não lia a palavra. E algo que me parece importante, no contexto geral de que venho falando, emerge agora insinuando a sua presença no corpo destas reflexões. Me refiro a meu medo das almas penadas cuja presença entre nos era permanente objeto das conversas dos mais velhos, no tempo de minha infância. As almas penadas precisavam da escuridão ou da semi-escuridão para aparecer, das formas mais diversas – gemendo a dor de suas culpas, gargalhando zombeteiramente, pedindo orações ou indicando esconderijos de botijas. Ora, até possivelmente os meus sete anos, o bairro do Recite onde nasci era iluminado por lampiões que se perfilavam, com certa dignidade, pelas ruas. Lampiões elegantes que, ao cair da noite, se “davam” à vara mágica de seus acendedores. Eu costumava acompanhar, do portão de minha casa, de longe, a figura magra do “acendedor de lampiões” de minha rua, que vinha vindo, andar ritmado, vara iluminadora ao ombro, de lampião a lampião, dando luz à rua.

Uma luz precária, mais precária do que a que tínhamos dentro de casa. Uma luz muito mais tomada pelas sombras do que iluminadora delas. Não havia melhor clima para peraltices das almas do que aquele. Me lembro das noites em que, envolvido no meu re medo, esperava que o tempo passasse, que a noite se fosse, que a madrugada semiclareada viesse trazendo com ela o canto dos passarinhos “manhecedores”. Os meus temores noturnos terminaram por me aguçar, manhãs abertas, a percepção de um sem-número de ruídos que se perdiam na claridade e na algazarra dos dias e que eram misteriosamente sublinhados no silêncio fundo das noites. Na medida, porém, em que me fui tomando íntimo do meu mundo, em que melhor o percebia e o entendia na “leitura” que dele ia fazendo, os meus temores iam diminuindo. Mas, é importante dizer, a “leitura” do meu mundo, que me foi sempre fundamental, não fez de mim um menino antecipado em homem, um racionalista de calças curtas.

A curiosidade do menino não iria distorcer-se pelo simples fato de ser exercida, no que fui mais ajudado do que desajudado por meus pais. E foi com eles, precisamente, em certo momento dessa rica experiência de compreensão do meu mundo imediato, sem que tal compreensão tivesse significado malquerenças ao que ele tinha de encantadoramente misterioso, que eu comecei a ser introduzido na leitura da palavra. A decifração da palavra fluía naturalmente da “leitura” do mundo particular. Não era algo que se estivesse dando superpostamente a ele. Fui alfabetizado no chão do quintal de minha casa, à sombra das mangueiras, com palavras do meu mundo e não do mundo maior dos meus pais. O chão foi o meu quadro-neqro; gravetos, o meu giz. Por isso é que, ao chegar à escolinha particular de Eunice Vasconcelos, cujo desaparecimento recente me feriu e me doeu, e a quem presto agora uma homenagem sentia, já estava alfabetizada. Eunice continuou e aprofundou o trabalho de meus pais. Com ela, a leitura da palavra, da frase, da sentença, jamais significou uma ruptura com a “leitura” do mundo. Com ela, a leitura da palavra foi a leitura da “palavramundo”. Há pouco tempo, com profunda emoção, visitei a casa onde nasci. Pisei o mesmo chão em que me pus de pé, andei, corri, falei e aprendi a ler.

O mesmo do – primeiro mundo que se deu à minha compreensão pela “leitura” que ele fui fazendo. Lá, re-encontrei algumas das árvores da minha infância. Reconheci-as sem dificuldade. Quase abracei os grossos troncos – os jovens troncos de minha infância. Então, uma saudade que eu costumo chamar de mansa ou me envolveu cuidadosamente. Deixei a casa contente, com a alegria de quem re-encontra gente querida. Continuando neste esforço de “re-ler” momentos fundamentais de experiências de minha infância, de minha adolescência, de minha mocidade, em que a compreensão crítica da importância do ato de ler se veio em mim constituindo através de sua prática, retomo o tempo em que, como aluno do chamado curso ginasial, me experimentei na percepção critica dos textos que lia em classe, com a colaboração, até hoje recordada, do meu então professor de língua portuguesa.

Não eram, porém, aqueles momentos puros exercícios de que resultasse um simples dar-nos conta de uma página escrita diante de nós que devesse ser cadenciada, mecânica e enfadonhamente “soletrada” e realmente lida. Não eram aqueles momentos “lições de leitura”, no sentido tradicional desta expressão. Eram momentos em que os textos se ofereciam à nossa inquieta procura, incluindo a do então jovem professor José Pessoa. Algum tempo depois, como professor também de português, nos meus vinte anos, vivi intensamente a importância elo de ler e de escrever, no fundo indicotomizáveis, com os alunos das primeiras séries do então chamado curso ginasial. A regência verbal, a sintaxe de concordância, o problema da crase, o sinclitismo pronominal, nada disso era reduzido por mim a tabletes de conhecimentos que devessem ser engolidos pelos estudantes. Tudo isso, pelo contrário, era proposto à curiosidade dos alunos de maneira dinâmica e viva, no corpo mesmo de textos, ora de autores que estudávamos, ora deles próprios, como objetos a serem desvelados e não como algo parado, cujo perfil eu descrevesse.

Os alunos não tinham que memorizar mecanicamente a descrição do objeto, mas apreender a sua significação profunda. Só apreendendo-a seriam capazes de saber, por isso, de memoriza-la, de fixá-la. A memorização mecânica da descrição do elo não se constitui em conhecimento do objeto. Por isso, é que a leitura de um texto, tomado como pura descrição de um objeto é feita no sentido de memorizá-la, nem é real leitura, nem dela portanto resulta o conhecimento do objeto de que o texto fala. Creio que muito de nossa insistência, enquanto professoras e professores, em que os estudantes “leiam”, num semestre, um sem-número de capítulos de livros, reside na compreensão errônea que às vezes temos do ato de ler. Em minha andarilhagem pelo mundo, não foram poucas as vezes am que jovens estudantes me falaram de sua luta às voltas com extensas bibliografias a serem muito mais “devoradas” do que realmente lidas ou estudadas. Verdadeiras “lições de leitura” no sentido mais tradicional desta expressão, a que se achavam submetidos em nome de sua formação científica e de que deviam prestar contas através do famoso controle de leitura. Em algumas vezes cheguei mesmo a ler, em relações bibliográficas, indicações em torno de que páginas deste ou daquele capítulo de tal ou qual livro deveriam ser lidas: “Da página 15 à 37”.

Casa onde morou Paulo Freire, em Recife (http://www.projetomemoria.art.br/PauloFreire/biografia/01_biografia_infancia.html

A insistência na quantidade de leituras sem o devido adentramento nos textos a serem compreendidos, e não mecanicamente memorizados, revela uma visão mágica da palavra escrita. Visão que urge ser superada. A mesma, ainda que encarnada desde outro ângulo, que se encontra, por exemplo, em quem escreve, quando identifica a possível qualidade de seu trabalho, ou não, com a quantidade de páginas escritas. No entanto, um dos documentos filosóficos mais importantes de que dispomos, As teses sobre Feuerbach, de Marx, tem apenas duas páginas e meia… Parece importante, contudo, para evitar uma compreensão errônea do que estou afirmando, sublinhar que a minha critica O magicização da palavra não significa, de maneira alguma, uma posição pouco responsável de minha parte com relação à necessidade que temos, educadores e educandos, de ler, sempre e seriamente, os clássicos neste ou naquele campo do saber, de nos adentrarmos nos textos, de criar uma disciplina intelectual, sem a qual inviabilizamos a nossa prática enquanto professores e estudantes. Dentro ainda do momento bastante rico de minha experiência como professor de língua portuguesa, me lembro, tão vivamente quanto se ela fosse de agora e não de um ontem bem remoto, das vezes em que demorava na análise de textos de Gilberto Freyre, de Lins do Rego, de Graciliano Ramos, de Jorge Amado. Textos que eu levava de casa e que ia lendo com os estudantes, sublinhando aspectos de sua sintaxe estreitamente ligados ao bom gosto de sua linguagem.

Àquelas análises juntava comentários em torno de necessárias diferenças entre o português de Portugal e o português do Brasil. Venho tentando deixar claro, neste trabalho em torno da importância do ato de ler – e não é demasiado repetir agora -, que meu esforço fundamental vem sendo o de explicitar como, em mim, aquela importância vem sendo destacada. É como se eu estivesse fazendo a “arqueologia” de minha compreensão do complexo ato de ler, ao longo de minha experiência existencial. Daí que tenha falado de momentos de minha infância, de minha adolescência, dos começos de minha mocidade e termine agora revendo, em traços gerais, alguns dos aspectos centrais da proposta que fiz no campo da alfabetização de adultos há alguns anos. Inicialmente me parece interessante reafirmar que sempre vi a alfabetização de adultos como um ato político e um ato de conhecimento, por isso mesmo, como um ato criador. Para mim seria impossível engajar-me num trabalho de memorização mecânica dos ba-be-bi-bo-bu, dos la-le-li-lo-lu. Daí que também não pudesse reduzir a alfabetização ao ensino puro da palavra, das sílabas ou das letras. Ensino em cujo processo o alfabetizador fosse “enchendo” com suas palavras as cabeças supostamente “vazias” dos alfabetizandos.

Pelo contrário, enquanto ato de conhecimento e ato criador, o processo da alfabetização tem, no alfabetizando, o seu sujeito. O fato de ele necessitar da ajuda do educador, como ocorre em qualquer relação pedagógica, não significa dever a ajuda do educador anular a sua criatividade e a sua responsabilidade na construção de sua linguagem escrita e na leitura desta linguagem. Na verdade, tanto o alfabetizador quanto o alfabetizando, ao pegarem, por exemplo, um objeto, como laço agora com o que tenho entre os dedos, sentem o objeto, percebem o objeto sentido e são capazes de expressar verbalmente o objeto sentido e percebido. Como eu, o analfabeto é capaz de sentir a caneta, de perceber a caneta e de dizer caneta. Eu, porém, sou capaz de não apenas ssentir a caneta, de perceber a caneta, de dizer caneta, mas também de escrever caneta e, conseqüentemente, de ler caneta. A alfabetização é a criação ou a montagem da expressão escrita da expressão oral. Esta montagem não pode ser feita pelo educador para ou sobre o alfabetizando. Aí tem ele um momento de sua tarefa criadora. Creio desnecessário me alongar mais, aqui e agora, sobre o que tenho desenvolvido, em diferentes momentos, a propósito da complexidade deste processo. A um ponto, porém, referido várias vezes neste texto, gostaria de voltar, pela significação que tem para a compreensão critica do ato de ler e, conseqüentemente, para a proposta de alfabetização a que me consagrei. Refiro-me a que a leitura do mundo precede sempre a leitura da palavra e a leitura desta implica a continuidade da leitura daquele. Na proposta a que me referi acima, este movimento do mundo à palavra e da palavra ao mundo está sempre presente. Movimento em que a palavra dita flui do mundo mesmo através da leitura que dele fazemos. De alguma maneira, porém, podemos ir mais longe e dizer que a leitura da palavra não é apenas precedida pela leitura do mundo mas por uma certa forma de “escrevê-lo” ou de “reescreve-lo”, quer dizer, de transformá -lo através de nossa prática consciente. Este movimento dinâmico é um dos aspectos centrais, para mim, do processo de alfabetização.

Daí que sempre tenha insistido em que as palavras com que organizar o programa da alfabetização deveriam vir do universo vocabular dos grupos populares, expressando a sua real linguagem, os seus anseios, as suas inquietações, as suas reivindicações, os seus sonhos. Deveriam vir carregadas da significação de sua experiência existencial e não da experiência do educador. A pesquisa do que chamava universo vocabular nos dava assim as palavras do Povo, grávidas de mundo. Elas nos vinham através da leitura do mundo que os grupos populares faziam. Depois, voltavam a eles, inseridas no que chamava e chamo de codificações, que são representações da realidade. A palavra tijolo, por exemplo, se inseriria numa representação pictórica, a de um grupo de pedreiros, por exemplo, construindo uma casa. Mas, antes da devolução, em forma escrita, da palavra oral dos grupos populares, a eles, para o processo de sua apreensão e não de sua memorização mecânica, costumávamos desafiar os alfabetizandos com um conjunto de situações codificadas de cuja decodificação ou “leitura” resultava a percepção critica do que é cultura, pela compreensão da prática ou do trabalho humano, transformador do mundo.

No fundo, esse conjunto de representações de situações concretas possibilitava aos grupos populares uma “leitura” da “leitura” anterior do mundo, antes da leitura palavra. Esta “leitura” mais crítica da “leitura” anterior menos crítica do mundo possibilitava aos grupos populares, às vezes em posição fatalista em face das injustiças, uma compreensão diferente de sua indigência. É neste sentido que a leitura critica da realidade, dando-se num processo de alfabetização ou não e associada sobretudo a certas práticas claramente políticas de mobilização e de organização, pode constituir-se num instrumento para o que Gramsci chamaria de ação contra-hegemônica. Concluindo estas reflexões em torno da importância do ato de ler, que implica sempre percepção critica, interpretação e “re-escrita” do lido, gostaria de dizer que, depois de hesitar um pouco, resolvi adotar o procedimento que usei no tratamento do tema, em consonância com a minha forma de ser e com o que posso fazer. Finalmente, quero felicitar os idealizadores e os organizadores deste Congresso. Nunca, possivelmente, temos necessitado tanto de encontros como este, como agora”.

Paulo Freire, 12 de novembro de 1981.

PAULO FREIRE É BOM PRA VISTA

Cristina Nunes de Sant´Anna | Setembro 2021

Preciso deixar registrado meu profundo agradecimento ao Laboratório de Comunicação, Cidade e Consumo (Lacon) da UERJ, do qual sou pesquisadora associada, e à Associação Brasileira de Pesquisadores de Comunicação Organizacional e de Relações Públicas (Abrapcorp), que me presentearam com um passaporte mágico para me levar ao mestre Paulo Freire (1921-1997).: https://www.youtube.com/watch?v=YsAQu2A5Ix4.

A viagem, de fato, muito me emocionou. Pela iniciativa de ambas as instituições, foi apresentado, no dia 2 de setembro, um evento on line sobre o patrono da educação brasileira, em comemoração a seu centenário de nascimento.

Foi também graças ao Lacon e à Abrapcorp, que eu me vi diante das madeleines de Marcel Proust na xícara de chá, fazendo minha mise en âbime, para me enveredar por artefatos de minha memória.

Ora, e não é a memória que forja em nós exemplos a seguir, histórias a perpetuar, modelos a cultuar? Não é a memória o lugar da retenção do conhecimento, da aprendizagem? Não é a memória o lugar onde se inicia a elaboração do conhecimento científico? A memória liga o presente ao passado, a fim de que partamos para o futuro. São antepassados e tradições que nos tornam o que somos. O papel da memória, contudo, é mais do que reviver o passado. É nos tornar dignos de nós mesmos, por intermédio deste passado, e avaliando o que merece ser revisto ou não. Mantido ou não. O futuro não existe. É o presente misturado ao passado que nos torna capazes de construí-lo.

O lugar mnemônico seria, então, o lugar da nossa imortalidade, já que vive em nossos filhos, netos, nas histórias que compartilhamos, nos hábitos que tivemos e na memória imortal que deixamos. É esta memória que compartilhamos que se imortaliza na língua que falamos, nas culturas que dividimos, nos nossos sentimentos coletivos. É, então, esta nossa memória imortal que nos pode tornar melhores ao nos conceder o poder de não repetir o que não deve ser repetido e a engendrar outras memórias para o futuro.

Pois a chama de minha imortalidade pela memória veio à tona no dia 2 de setembro de 2021, em meio ao seminário de Paulo Freire. Convenhamos que o presente que se apresenta a nós é o pior possível. Mas o presente, contudo, mais do que nunca, será capaz de nos levar ao passado com as práticas de Paulo Freire: ícone de resistência, esperança, renovação, escapatória e saída. Quanto mais os seres do atraso querem apagar sua maestria, mais Freire ganha tutano e aumenta sua grandeza. Isto só prova sua eterna pujança.

Há muitos e muitos anos, trabalhei como professora primária num bairro da zona portuária do Rio de Janeiro, chamado Caju. Mais conhecido por ser lugar só de gente morta, pelos cemitérios dali.

A escola pública em que lecionei ficava dentro de uma comunidade de pescadores muito pobre. Eu tinha 19 anos e Paulo Freire tinha sido proibidão pela ditadura. Um professor de Filosofia havia nos falado dele na Escola Normal que eu havia cursado: de sua mania de alfabetizar meninos e meninas grandes de pé no chão, no interior do Nordeste, com seu método de palavras e ideias símbolos, chamado “De pé no chão também se aprende a ler”. Aprendia-se com alegria e trocas de saberes. Este professor de Filosofia nos falou também de seu exílio forçado, justamente por seu método ter conseguido alfabetizar tão bem essas gentes todas, privadas que eram do direito à leitura por esta mesma ditadura e pelas elites de sempre. Sempre elas.

Foi quando Educação como prática de liberdade e Pedagogia do oprimido me caíram às mãos, presenteados por meu pai. Parei tudo para lê-los.

Corta pro Caju.

Era 1984 e eu chegara para meu primeiro dia como professora. “Ganhei” a turma que ninguém queria. A turma que estava há muito sem professor, sem aula, sem lição, sem alfabetização. Eles queriam saber tudo sobre mim. Tinham pressa. E muita, muita energia. Para me testar, pegaram todos os alfinetes do mural e se espetavam uns aos outros. Eu, sentindo-me completamente perdida, ia tentando recolher os alfinetes deles e os ia espetando em minha blusa. A sala de aula era um circo. Então, como que num pensamento mágico, rolou uma sinapse poderosa:

“Ora, se eu acredito mesmo em educação como prática de liberdade, essa garotada tem mais é que pegar alfinete do mural pra se expressar e eles e eu precisamos encontrar uma educação política, de decisão, que os liberte do analfabetismo”, pensei, com a blusa sem quase mais lugar para espetar alfinetes.

Pois é. Leitura e literatura têm dessas bruxarias sinápticas. Podem acreditar. No mais, não por acaso, Paulo Freire é também autor de A importância do ato de ler.

Comecei a pensar em “palavras mundo” deles. E pergunta daqui e pergunta dali e iam rolando desenhos, rodas de conversa, de histórias, já que não sabiam ler. Eu pensava em Paulo Freire, neles e em mim. Seguia tateando. Sabia que o método de Freire havia sido criado para adultos. Eu tinha crianças e adolescentes. Mas liberdade é pra todo mundo. E educação também.

Se ali era uma colônia de pescadores, comecei por perguntar qual era o melhor peixe que era vendido pelos pais e que eles raramente podiam experimentar. Por quê? E de que parte deste peixe gostariam mais de comer, se pudessem? E por que não podiam? Então nunca iriam poder comer este tipo de peixe? Mas o mar não tem peixe pra todo mundo pescar se quiser? E fomos eu com eles e eles comigo (com Paulo Freire junto de nós), de peixe para mar, para desenho de mar com e sem peixe. Para história de sereia e para a primeira palavra lida. Palavra deles. Só deles. Que a leram. Sozinhos. Sem mim. Livres e, a partir de então, cheios de palavras que viriam a ler. Primeiro foi um, depois outro. Tais quais peixinhos novos nadando rápidos no cardume.

Fui no banheiro chorar. Mas não podia chorar muito porque eles iriam me perguntar o porquê. Ainda mais que a gente tinha combinado de sempre querer saber sobre porquês. E que o bacana era a gente não ter resposta para tudo quanto é porque pra ter sempre porque pra perguntar e, assim, poder ir descobrindo e deixando marcas na vida. Igual ao mar que vem e vai na areia. Sempre deixando um pouco de sua espuma ali, marcada, pra gente poder ver e ler.

Faz muito tempo que saí daquela escola de filhos de pescadores. Nunca mais os vi. Mas eles aprenderam a ler palavras da vida.

Obrigada, Lacon e Abrapcorp.

Obrigada Paulo Freire, por esta jornada pela imortalidade da memória, que nos fortalece sempre e nos revigora em nossos traços e leituras pelo mundo.

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Cristina Nunes de Sant´Anna é pesquisadora do Lacon, pós-doutora em Comunicação (PPGCom/UERJ), doutora em Ciências Sociais (UERJ), mestre em Ciência Política (UFF) e jornalista.

Paulo Freire sempre