POR QUE LIMA BARRETO?

Por Cristina Nunes de Sant´Anna, jornalista e doutora em Ciências Sociais

Foi num 13 de maio, há 140 anos, que nasceu o escritor Afonso Henriques de Lima Barreto. Como sua fã incondicional, a ponto de ter o escritor tatuado em meu braço, quero, neste artigo, explicar o porquê de o autor precisar ser lido sempre. Sempre mesmo.

Então, por que Lima Barreto?

Lima Barreto porque, pra começar, sua obra é sinônimo de inconformismo e resistência.

Porque a literatura é sua nau e a questão com a qual se bate Lima Barreto em sua obra é a da legitimação da solidariedade num mundo em crise, em que o saber e o poder se configuram como um discurso científico prepotente e superior. De todas as atividades humanas, Lima Barreto atribuía à arte e, em particular, à literatura, essa missão de unir os homens acima de todas as diferenças.

Romancista e cronista dos mais importantes da Primeira República, Lima Barreto foi também um escritor engajado. Uma de suas armas de engajamento foi a ironia. Usou muito dela, do deboche, muito próximos da caricatura, para escrever.  Muitos de seus críticos consideravam, inclusive, que a ironia desqualificava e tornava superficial seu trabalho. Mas a ironia, a meu ver, estaria dentro de um projeto do autor de simplificar o cânone literário de sua época, tornando-o acessível a qualquer um, de modo a desvinculá-lo do projeto neoclássico de rebuscamento e torvelinho tão ao gosto de outros escritores de seu tempo, como Olavo Bilac e Coelho Neto. O humor e o riso eram uma forma toda sua de mostrar as contradições e o descaso da Primeira República brasileira, relativo à gente pobre e miserável da então capital republicana. O riso em Lima Barreto se aproxima da caricatura, uma das formas mais pujantes e abstratas da arte.

Porque esta opção pelo deboche em boa parte de sua obra, como meio de engajamento, deu-se por ele compreender o papel do escritor como um utilizador da literatura como meio de combate e alguém que pudesse tratar das aflições da humanidade, sem se descuidar, contudo, do viés estético.

 Porque Lima Barreto quis ser — e foi —  o escritor que nos comove e que nos conta de onde veio, para onde vai e o que quer nos dizer, sem meias palavras. Palavras levadas a ferro e fogo pelo escritor, que penhora sua obra em prol de compromissos que desejou assumir com a coletividade ou com uma parcela determinada de uma sociedade com a qual se solidariza, usando como arma de combate a literatura, que dizia ser sua esposa muito amada e engajada.

Porque uma literatura dita engajada e seu escritor põem à mostra de forma permanente a ética, aplicando-a ao fato literário, pois escrever literatura é um ato público, não se estando diante somente da arte pela arte. Do deleite, apenas.

Porque o sentido de engajamento, então, seria capaz de interpretar os anseios profundos de uma época e o escritor e sua literatura dita engajada seriam capazes de decodificar e de recodificar a palavra, a linguagem (ou linguagens), instrumentos sociais por excelência.

Porque a obra de Lima Barreto se centrou na denúncia a intelectuais que considerava apartados dos desvalidos, sem marcas de solidariedade a eles, pela escrita.

Porque, para Lima Barreto, o sentido de engajamento é aquele insistentemente exemplificado no temário social. Sua narrativa encerra um forte sentido de participação social. Nas linhas e entrelinhas de seus escritos há um senso vivo de humanidade. Sua argumentação se constrói a partir da observação de jogos de poder, relações políticas e suas consequências na sociedade.

Porque Afonso Henriques de Lima Barreto viveu em um contexto marcado por transformações substanciais, relacionadas à configuração da sociedade capitalista no Brasil. O autor ligou, então, em seus escritos, pela linguagem simples e direta, o político, o social e o econômico ao ideológico. Conseguiu, com sua intertextualidade, penetrar a fundo na ambiência de toda uma época, revelando por inteiro a mentalidade desta época. 

Porque sua obra de amplo espectro é um documentário fundamentado de um sistema que passou de uma sociedade escravista, para uma falsa democracia republicana (sustentada por oligarquias) que segue conosco até hoje. Composição de poder e força que Lima Barreto considerava um anátema.

Porque ele foi também um pensador social de seu tempo: analisou, por intermédio de sua obra, o centro do poder do país, tendo como ponto de observação (e de interpretação) a cidade-capital da República brasileira. Sua visão aguçada e crítica detectou o artefato da modernidade pelas aparências, instalado pela ordem republicana, no jugo de poder levado a termo pela elite do país.

Porque ao autor deve-se o mérito de consagrar questões de ordem social à sua narrativa, bem como seu entendimento e sua defesa da arte literária como fenômeno igualmente social, em razão de estar imbricada na cultura, além de ser considerada por Lima Barreto um instrumento de união e compaixão entre as gentes.

Porque Lima Barreto fundiu sua identidade pessoal e à do autor que ele foi à identidade do país. A identidade que considerava ideal como resposta para o fortalecimento da construção de um projeto de nação brasileira democrática e multiétnica que poderia ser fornecida pela literatura, literatura que se forjou à idéia do autor de congraçamento da humanidade.

  Primeiro autor brasileiro a se definir como negro, Lima Barreto não construiu uma literatura somente negra, mas negra, inclusive, pois foi como um negro nascido em um país racista e defensor de um projeto de branqueamento nacional, que Lima Barreto percebe a realidade, enfrentando-a com engajamento e resistência. Ele próprio pagou a publicação de seus livros, para fazer sua literatura engajada, isto é, aquela que se configuraria numa forma de comunhão entre os homens. Os personagens citadinos e metafóricos que criou mostraram toda a mentalidade burguesa, com suas fraquezas e alienações, que predominou no Brasil nos primeiros 30 anos da vida republicana.

Nem poderia ser diferente porque, para Lima Barreto, a arte tinha a função sociológica de promover a compreensão dos processos da existência humana. Sua obra representou (e ainda representa) um contraponto às fontes oficiais da Primeira República com seus modos e meios de fazer política, com sua arquitetura afrancesada, seu urbanismo de derrubada do ontem e com sua dependência ao capital estrangeiro e à especulação imobiliária. A degeneração da cidade e, em consequência, de seu povo, não escaparam ao olhar crítico e ironicamente engajado de Lima Barreto. As transformações urbanas de ocupação e a dita organização do espaço urbano foram criticadas pelo autor, não só pelo desalojamento dos pobres, mas por representarem a transformação de parcela da sociedade da época, que desejava mostrar e perpetuar um estilo de vida que evidenciasse uma marca de classe: a de classe superior na hierarquia social, moradora de uma cidade plena de marcas de luxo e riqueza.

Porque a obra Lima Barreto atrai, ainda hoje. Ao se iniciar sua leitura, quase que imediatamente, estabelece-se uma espécie de pacto entre o autor e seu leitor, em virtude das eficácia, atualidade e vitalidade de sua narrativa do cotidiano. No decorrer da leitura, ocorre uma diluição de limites, de barreiras e a linguagem da narrativa flui intertextual. Suas narrativas críticas se enredam às narrativas do cotidiano.

Por que Lima Barreto, pergunto eu, de novo: Porque lê-lo é maravilhoso e desconcertante. Porque de Lima Barreto está tudo aí, na nossa frente, pulando em nosso colo: planos mirabolantes para ruir a saúde pública, doença, morte, assassinatos de gente pobre. A atualidade de seus escritos nus e crus sobre miséria, calhordice, omissão e indiferença é flagrante. Porque sóbrio ou caindo de bêbado nas ruas, em casa, lendo na biblioteca que virou seu quarto — a Limana — como a chamava, ou sem poder sair, no inverno, por não ter roupa de lã e as calças estarem lavando, Lima Barreto pode ser considerado como um poderoso remédio para a memória e um estimulante para o engajamento por princípios éticos. O autor sempre defendeu visceralmente seus pontos de vista, escolhendo retratar, em sua obra, o lado dos oprimidos, dos desvalidos, malsãos, dos violentados de alguma forma pela Primeira República.

Lima Barreto porque sim. Sempre.

LIMA BARRETO, O ANIVERSARIANTE HOMENAGEADO

Patrono e razão de existir de Literatura é bom pra vista, Lima Barreto nasceu em 13 de maio de 1881, há 140 anos, e sempre tem e terá algo de importante a nos dizer e ensinar. Durante todo o mês de maio, Literatura é bom pra vista vai homenagear o autor, abordando suas vida e obra.

Afonso Henriques de Lima Barreto foi um dois mais importantes escritores de ficção brasileira. Seus escritos foram pouco valorizados em vida. Seu talento como escritor só é reconhecido de uns tempos para cá, quando vira tema de diversos estudos, nos mais diversos campos do conhecimento, em virtude de sua obra ser considerada fonte de informação, pesquisa e do que o próprio autor representou como intelectual, escritor, jornalista, negro, no contexto da República Velha.

Leiamos o que Lima Barreto escreve sobre o liberalismo “à brasileira” e sistema escravocrata, em uma de suas crônicas:

“Quando se tratou aqui da abolição da escravatura negra, houve homens que por sua generosidade pessoal, pelo seu procedimento liberal, pelo conjunto de suas virtudes privadas e públicas e alguns mesmo pelo seu sangue, deviam ser abolicionistas; entretanto, eram escravocratas ou queriam a abolição com indenização. (…) É que eles se haviam convencido desde meninos, tinham como artigo de fé que a propriedade é inviolável e sagrada; e, desde que o escravo era uma propriedade…”.

A Primeira República já nasceu excludente e assim se manteve, mediante acordos entre proprietários rurais e, depois, entre seus filhos bacharéis, que ocupavam altos cargos na burocracia estatal. Comenta Lima em uma crônica:

 “A república, trazendo à tona dos poderes públicos a borra do Brasil, transformou completamente os nossos costumes administrativos e todos os ‘arrivistas’ se fizeram políticos para enriquecer (…) A república no Brasil é o regime da corrupção”.

Na República dos governadores de Campos Sales, por exemplo, sabe-se que a Comissão de Verificação dos Poderes, instrumento criado por Sales, só confirmaria o candidato que estivesse de acordo com as regras do jogo político do presidente paulista, fosse qual fosse o resultado do pleito. Caso houvesse discordância sobre quem votar entre os eleitores, os “Lucrécios Barbas de Bode dariam nisso logo um jeito. Assim denominava Lima Barreto os cabos eleitorais truculentos da República Velha, que figuram entre seus escritos e circulavam pelos entes federativos da República dos Estados Unidos do Brasil. Eram cabos eleitorais, ou melhor, capangas. Sempre prontos a resolver qualquer contratempo na sala de votação, caso o eleitor não votasse no candidato do grupo político dominante. No sistema eleitoral republicano, parecia haver também “a complementação da renda” de alguns eleitores, com a chegada das eleições.

Conta Lima Barreto:

“Aproximam-se as eleições para intendentes municipais, os candidatos chovem, os eleitores pululam. Uma dia desses assisti a uma interessante conversa:

– Sabes, disse um carteiro para outro colega, estou me habilitando a eleitor. Já juntei minhas nomeações de distribuidor, de servente, de carteiro, ao requerimento na junta eleitoral, mas falta-me a certidão de idade.

– Em quem tu vais votar?

– No doutor Jagodes.

– Ele quanto te dá?

– Ainda não falei a respeito, mas espero cem mil-réis.

(…) É um serviço colossal esse que as eleições prestam de aumentar os vencimentos de nossas classes menos abastadas”, ironizava Lima.

E ainda há quem defenda a volta do voto impresso.

Era a República Federativa do Brasil, com seu sistema dito democrático (caro ao liberalismo) de governo, que constava de nossa primeira Constituição republicana, uma vez que determinava ser o regime representativo — aquele vigente sob a República.

Lei máxima em vigor a partir de 1891, a Constituição transformava as províncias em estados: entidades políticas de fato e de direito, estruturadas em unidades autônomas, com seu corpo, sua burocracia administrativa e seu aparato político local. Amparados todos, União e estados federativos na convivência harmônica da tripartição de poderes em Executivo, Legislativo e Judiciário, cada um deles gozando de liberdade para agir, convivendo em harmonia. 

Mas à letra da Lei Magna sobrepuseram-se estados de sítio, eleições fraudadas, interferências e ingerências do Executivo nos Poderes Legislativo e Judiciário, como exemplificado ao longo deste estudo. “A política resume-se num desencaroçar de atas falsas”, denunciava Lima Barreto, em uma de suas crônicas.

Repetindo: E ainda há quem defenda a volta do voto impresso.

Lima Barreto tratou deste cenário. Deste universo republicano que não ampliou a participação política da população. Do que a Primeira República afirmava ser. E não foi. Traçou profunda e alentada análise do espectro político de seu tempo e das ideias políticas do país, dos principais personagens que faziam política, durante a Primeira República, tendo como principal ponto de observação (e de interpretação) a capital: o centro do poder e de como este centro de poder irradiava-se para o restante da Federação.

Aponta, com deliberado sarcasmo, as ambiguidades do sistema e seus paradoxos. Seus escritos fornecem ao projeto de nação republicano que seguia excludente e elitista uma resposta firme e malcriada. A resposta viria da literatura, estaria na literatura militante, do uso político que era preciso fazer dela e seria dada com a literatura, por intermédio da linguagem especial em que esta literatura é produzida.

Ao montar este rico e variado painel do país, com fortes tintas, Lima Barreto cruza a fronteira da caricatura, mas isto é também parte de seu projeto de reconstruir o ideário de nação mais igualitário. Com o riso, o deboche, a literatura militante, partidária e engajada, o bêbado e esbodegado Lima Barreto fabricou um bote salva-vidas para o povo náufrago da República Federativa do Brasil.

LIMA BARRETO, O ANIVERSARIANTE DO MÊS DE MAIO

Nascido no dia 13 de maio de 1881, Lima Barreto é a razão de existir de Literatura é bom pra vista. Então é dele que vamos falar:

A cidade do Rio de Janeiro e a literatura foram as duas grandes paixões do autor. Afonso Henriques de Lima Barreto amava o Rio e criticava recorrentemente reformas e modificações urbanas que expulsassem o povo pobre de suas casas e do espaço público da cidade. Morador do subúrbio de Todos os Santos, no Rio de Janeiro, de onde se deslocava quase todos os dias, para o centro da cidade, era ele também um andarilho. Bêbado ou sóbrio, Lima Barreto adorava passear e flanar pela cidade para vasculhar e observar cada canto dela, registrar na memória e na literatura suas impressões e críticas. Amava muitíssimo também a literatura e sua biografia, alinhavada pelo contexto social em que viveu, está emaranhada em seus escritos.

Mas há também as questões sociais com as quais se ocupou em sua obra, como pobreza, preconceito racial, educação, saúde, entre outros, descritos à luz da paisagem republicana. Por isso, não há como — tampouco por que — ignorar a presença e a incidência de tais temas em sua narrativa, vinda de sua própria vida, do cotidiano da cidade e dos personagens dessa cidade, metaforizados em seus escritos, como marcas.

É no próprio diário que o autor começa a rascunhar, por exemplo, a obra Clara dos Anjos, em 1904. Neste mesmo diário, contou dever o aluguel e só ter comido uma empada, no dia 12 de junho de 1903. Em janeiro de 1905, registrou ter feito um empréstimo no banco e recebido um cartão postal anônimo com a ilustração de um macaco em alusão a ele próprio (idem, p. 90). Em 1906, começava a rascunhar neste diário outra obra: Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá.

A literatura para Lima Barreto era sua nau, sua esposa querida, como escreveu muitas vezes, arte que considerava vínculo de solidariedade entre  homens, mulheres, velhos, velhas, moços e moças, crianças e desvalidos de todo tipo, além de um profundo sentido de engajamento no combate à pobreza e às necessidades vivenciadas por toda esta gente.

PRIMEIRA CRÔNICA

A primeira crônica do escritor foi publicada em 1900, no jornal universitário A Lanterna. Lima Barreto era ainda estudante da Politécnica. A crônica já enunciava a paixão do autor pela cidade, sendo aberta com a frase “o nosso caro Rio de Janeiro”  e tecia uma elogiosa crítica ao recital do maestro e compositor Francisco Braga. Lima Barreto estava com 19 anos.

Mas foi em 1914 que o autor começou a escrever crônicas diárias no Correio da Noite, ano de sua primeira internação no hospício. A segunda internação foi no dia de Natal de 1919. Neste mesmo ano, meses antes, havia se candidatado, pela segunda vez, à Academia Brasileira de Letras, sem sucesso. Ainda em 1919, deixaria de colaborar com a revista anarquista ABC, em razão de o periódico ter publicado um artigo contra a raça negra. Lima Barreto iniciara sua colaboração na revista em 1916.  Em 1921, o escritor receberia uma menção honrosa pela sua obra Vida e Morte de M.J. Gonzaga de Sá. Este fato talvez lhe tenha dado esperanças para apresentar nova candidatura, na Academia Brasileira de Letras, na vaga aberta pela morte de seu desafeto: João do Rio.

Era a terceira vez que se candidatava a uma vaga. O próprio escritor,  todavia, decidiu retirar a candidatura, alegando motivos íntimos.

Afonso Henriques de Lima Barreto nos legou vasta obra.Além de suas crônicas, há romances, ensaios, artigos, contos, reportagens, novelas, peças de teatro, material reunido numa coleção de 17 volumes, editado e publicado pela Editora Brasiliense, em 1956, sob a coordenação do principal biógrafo do autor, o historiador e jornalista Francisco de Assis Barbosa.

Lima Barreto e sua obra estariam consolidados em uma rede de relações de altos e baixos (mais baixos que altos), dadas as marcas do autor: negro, suburbano, pobre, alcóolatra, sofrendo acessos de loucura, estudante de engenharia em uma escola cuja maioria era branca, neto de escravos, um pronto, que vivia de pedir dinheiro emprestado (e não pagar), um medroso de enlouquecer de vez, como o pai. Mas, sobretudo e sempre, um escritor engajado, em prol dos pobres e miseráveis, iguais a ele. Um escritor de resistência, que criou metáforas de resistência para resistir, em seu espaço de combate, a cidade. Armado com a escrita, mas solidário com o outro, pela literatura. E a resistência manteve-se com toda a sua dureza, na realidade vivida por Lima Barreto. Ele sempre condicionou valores éticos e estéticos à sua narrativa. Escolheu rumos difíceis, mas não renunciou a eles: “A resistência é um movimento ao foco narrativo, uma luz que ilumina o nó inextricável que ata o sujeito a seu contexto existencial e histórico, nos diz Alfredo Bosi (que nos deixou tão precocemente, abatido pela Covid em abril de 2021).

As duas internações que Lima Barreto sofreu no hospício marcaram sua vida e seus escritos. Sobretudo no Rio de Janeiro de inícios do século XX, cuja ciência médica vigente tratava dos loucos de uma forma bastante dura.  Principalmente, se negros fossem. A Primeira República se valia de tratados pseudo-científicos e de teorias de raças inferiores e superiores, para justificar profilaxias a doentes e arroubos de eugenia. Lima Barreto narra como chegou ao hospício, utilizando-se do recurso metafórico da camuflagem e do desvio da própria identidade, no conto Como o Homem Chegou, para falar de si próprio.

HOJE É ANIVERSÁRIO DE LIMA BARRETO

Hoje é dia 13 de maio. Dia da Abolição da Escravatura, dia em que o maravilhoso, o genial Lima Barreto nasceu há 140 anos. Patrono e razão de existir de Literatura é bom pra vista, vamos falar de um de seus contos:

Em seu conto, Como o Homem Chegou (BARRETO, 1956), Lima usa sua tábua de salvação, a literatura, para narrar toda a trajetória de um louco, até chegar a um determinado hospício do Rio, enjaulado num carro-forte. O conto foi escrito por ocasião de sua primeira internação no hospício, em 1914.

“Num carro-forte. Pior do que masmorra ambulante, do que solitária, pois nessas prisões ainda se sente a algidez da pedra, alguma meiguice, meiguice de sepultura, mas no tal carro feroz, é tudo ferro, ferro na cabeça, ferro nos pés, ferro para todo lado.” (Barreto, 1956, p. 278).

Depois de tanto sacolejar, o louco chega, ao hospício.  Mas em que condições esse homem chegou?

“Logo que foi chegado, um hábil serralheiro veio abri-lo, pois a fechadura desarranjara-se devido aos trancos e às intempéries da viagem, e desobedecia à chave competente. Sili determinou que os médicos examinassem o doente, exame que, mergulhados numa atmosfera de desinfectantes, foi feito no necrotério público.” (Idem, p. 292).

Estamos diante da metáfora de toda uma vida: a exclusão social pela cor e, agora, a exclusão vinda pela loucura e as profilaxias médicas, que protegidas sob o manto sagrado da ciência, para domar a loucura, significavam a morte em vida, esmiuçada por Foucault (2009), em sua história da loucura. 

Na passagem a seguir do conto, o personagem Consono, um delegado que quase não comparece à delegacia, pensa como deve tratar o louco que seus subalternos haviam acabado de prender:

“Cunsono pensou bem que esse negócio de reclusão de loucos é por demais grave e delicado e não era propriamente de sua competência fazê-lo, a menos que fossem sem eira nem beira ou ameaçassem a segurança pública.” (Barreto, 1956, p. 277).

Afonso Henriques de Lima Barreto escreve para não morrer, uma escrita de si, uma literatura de si, em seu diário, em seus escritos. O seu eu, de autor, despedaça-se e a linguagem explode em mil pedaços de metalinguagem. Lima Barreto escreve para enfrentar seu medo de enlouquecer e para dizer sua verdade, por intermédio da literatura:

“(…) Essa questão do álcool, que me atinge, pois bebi muito e, como toda gente, tenho que atribuir as minhas crises de loucura (…) Mas por que a riqueza, base de nossa atividade, coisa que desde menino, nos dizem ser o objeto da vida, da nossa atividade na terra, não é também a causa da loucura?.” (Barreto, 2004, p. 45).

Foram duas internações no Hospital Nacional dos Alienados (o atual Hospital Psiquiátrico Pinel), em Botafogo: em 1914 e em 1919. Na segunda vez, Lima Barreto é laçado e largado no hospício na noite de Natal. Passara o dia a vagar, bêbado, em delírios, pelas proximidades de sua casa: Tal qual seu pai, tal qual um Quixote, delirava com seus moinhos de vento.

Mas a literatura é sua nau e a questão com a qual se bate Lima Barreto em sua obra é a da legitimação da solidariedade num mundo em crise, em que o saber e o poder se configuram como um discurso científico prepotente e superior. De todas as atividades humanas, Lima Barreto atribuía à arte e, em particular, à literatura, essa missão de unir os homens acima de todas as diferenças.

Afirma ele:

“Eu quero ser escritor porque quero e estou disposto a tomar na vida o lugar que colimei. Queimei meus navios, deixei tudo, tudo, por essas coisas de letras (…). Por mais que não queiram, sou um literato e o que toca àscoisas das letras não me é indiferente.” (Barreto, 1956, pp. 10-11).). 

Lima Barreto trabalhou assiduamente como jornalista, passando por várias redações. Trabalhou ainda no Ministério da Guerra. Começa a escrever seus romances e Isaías Caminha será seu livro de estréia, em 1909. Na obra, ele critica o jornal Correio da Manhã: do dono, Edmundo Bitencourt, a João do Rio, um dos principais jornalistas da publicação. Descreve no livro como funcionam o que chama de engrenagens do poder. No caso, a imprensa, que Lima Barreto classifica “como o quarto poder fora da Constituição.” (Barreto, 1956, p. 84). Paga caro pela ousadia. Na imprensa carioca, ninguém falará de seu livro.

Os livros citados constam da Coleção da obra completa de Lima Barreto, da Editora Brasiliense, publicada em 1956.

A íntegra do conto Como o homem chegou:

MAIO: MÊS DO ANIVERSÁRIO DE LIMA BARRETO

Patrono e razão de existir de Literatura é bom pra vista, Lima Barreto nasceu no dia 13 de maio. Lima e sua família foram profundamente marcados pelos acontecimentos políticos, históricos e sociais ocorridos entre os últimos anos do ocaso do Império e a chegada da Primeira República. O que Lima Barreto foi, escreveu e viveu está estreitamente relacionado com seu enredo familiar, mais especificamente, com seu pai, João Henriques de Lima Barreto e com a mudança do regime monárquico, para o republicano.

Entre seus nascimento — no dia 13 de maio de 1881 — e morte — no dia 1º de novembro de 1922 — Afonso Henriques de Lima Barreto testemunhou, escreveu sobre, conviveu com e passou por uma enormidade (e pluralidade) de fatos e episódios que, entrelaçados, convergiram na formação do processo de construção e de consolidação da Primeira República brasileira.

Lima trabalhou no Correio da Manhã

Os acontecimentos políticos do último ano da Monarquia não foram nada fáceis para a família Lima Barreto. Até a chegada da República e depois dela, o pai de Lima Barreto iria passar por maus bocados, até enlouquecer. João Henriques contraíra empréstimos por causa da doença da mulher, que morrera tuberculosa, deixando-lhe cinco filhos, e o ordenado mal dava para saldar as dívidas. Tinha dois empregos: na Imprensa Nacional e no jornal do Visconde de Ouro Preto, seu compadre e padrinho de seu primogênito: Afonso Henriques de Lima Barreto, que ganhou o nome Afonso, em homenagem ao padrinho. O nome completo do visconde era Afonso Celso de Assis Figueiredo.  Pois bem, com a República, o pai de Lima Barreto perderia seus dois empregos.

O padrinho de Lima: visconde de Outro Preto

E o regime lhe reservaria ainda outra surpresa. Iniciava-se o governo de Rodrigues Alves (1902-1906), que nomeou para ministro da Justiça, J.J. Seabra. O Jornal do Brasil publicou uma denúncia de que haveria irregularidades na administração das Colônias dos Alienados. O governo de Alves recém-assumira e Seabra queria mostrar que moralizaria sem demora o serviço público. É feita uma devassa, comissões vão ao local. (Barbosa, 1952, pp. 113-115). O pai de Lima Barreto enlouquece. Era 1902.

É que desempregado pela República de seu ofício de tipógrafo na Biblioteca Nacional, o simpatizante da Monarquia, João Henriques, conseguira um emprego de almoxarife na Colônia dos Alienados, na Ilha do Governador. Ali trabalhava e ali viviam ele e os filhos. João Henriques havia descoberto uma diferença no livro-caixa do asilo e, com medo de perder também esse emprego, vai enlouquecendo. De medo. Uma noite, acorda aos gritos e não deixa mais de gritar e delirar. Nada desviara, mas a lembrança da perseguição republicana, que resultara no desemprego, fez com que começasse a ter ataques nervosos e visões. Nada ficará provado contra ele. É inocentado, mas não adianta, enlouqueceu.

Casa onde viveu Lima Bareto, na Ilha do Governador, bairro do Rio de Janeiro

A loucura, os loucos e o local onde são confinados eram lugares-comuns na rotina de Lima Barreto: “Tenho, desde os nove anos, vivido no meio de loucos”, escreveu. Após a loucura do ex-administrador da colônia, a família Barreto muda-se para a Casa do Louco, como ficou conhecida pelos vizinhos a casa no subúrbio de Todos os Santos — a Vila Quilombo — como Lima Barreto ironicamente chamava o lugar que fora alugado pela família.

Observe-se que, além do ideal de eugenia, a República era partidária da teoria do branqueamento, pois se acreditava na dita superioridade da raça branca, com convicções científicas de raças mais e menos adiantadas, raças mais e menos inteligentes. Estas noções de raça e meio aplicavam-se em responsabilizar, com o anteparo de tratados pseudocientíficos, negros, mulatos e sertanejos pela perpetuação de hábitos incultos e maneiras grosseiras:  João Henriques de Lima Barreto era mulato, quasepreto, de ascendência escrava e, agora, doido.

Aos 21 anos, em razão da loucura do pai, Lima Barreto precisa assumir o sustento da família. É o filho mais velho. Abandona a Politécnica, onde cursava Engenharia. Sem o salário de João Henriques, cuja aposentadoria demora a sair, a família passa necessidades. Não tem a quem recorrer. Lima Barreto fica sabendo, então, de uma prova para admissão ao cargo de Ministério da Guerra, para amanuense. Decide fazer. É aprovado em segundo lugar e chamado.

Mas tal qual seu pai, Afonso Henriques de Lima Barreto tinha medo. Medo de não conseguir sustentar a família e a si próprio. Vivia de empréstimos para fechar o mês. Dava aulas particulares. Seu medo maior era seu pai morrer de repente e não ter dinheiro para enterrá-lo. Ele mesmo nos conta a respeito, em seu diário, escrito durante um de suas internações no hospício:

“Muitas causas influíram para que eu viesse a beber; mas, de todas elas, foi um sentimento ou pressentimento, um medo, sem razão nem explicação, de uma catástrofe doméstica sempre presente. Adivinhava a morte de meu pai e eu sem dinheiro para enterrá-lo. Previa moléstias com tratamentos caros e eu sem recursos. Amedrontava-me com uma demissão (…). Eu me aborrecia. Minha casa tão triste ela era. Meu pai delirava. (…) Estava cheio de dívidas. Bebia desbragadamente, a ponto de ficar completamente bêbado às nove ou dez horas da noite.

Jornalista, escritor, alcoólatra, humilhado em muitas ocasiões, por ser negro, tendo acessos de loucura até o fim da vida. Trabalhou em importantes jornais, como Jornal do Commercio e Correio da Manhã. Colaborou com artigos na imprensa operária. Lima Barreto nos legou vasta obra atual e genial.

E de todas as atividades humanas, o escritor atribuía à arte e, em particular, à literatura, essa missão de unir os homens acima de todas as diferenças.

Viva Lima Barreto!! Lima Barreto é ótimo pra vista.