Nestes tempos de ficarmos mais em casa, Literatura é bom pra vista sugere a leitura do livro Cidade, Corpo e Alimentação, disponível na internet*. Trata-se de uma coletânea sobre as interseções destes temas, bem como suas identidades. A obra é uma publicação da Rede Ibero-Americana de Pesquisa Qualitativa em Alimentação e Sociedade (Rede Naus). Foi organizada pelas professoras e pesquisadoras Maria Lúcia Magalhães Bosi, Shirley Donizete Prado e Ligia Amparo-Santos. Em mais de dez artigos, a alimentação e a nutrição são apresentadas em suas transformações sociais, tendo como pano de fundo o processo de urbanização e industrialização ao longo do século XX e das primeiras décadas do século XXI.
Na introdução, redigida pela professora Shirley Donizete Prado, ela nos explica que os autores foram convidados a escrever sobre relações entre as cidades, seus habitantes e suas relações com alimentação. Nesta mesma introdução, a professora lembra que o antropólogo francês Claude Lévi-Strauss, em sua obra Mitológicas, “tomou a cozinha e a preparação dos alimentos para pesquisas sobre diversos mitos indígenas”. Segundo ela, o antropólogo avalia “que a comida pode ser considerada na compreensão do que nos faz humanos”.
De fato. A descoberta do fogo tornou o cru, cozido. Ato cultural porque um ser humano, com suas próprias mãos e intelecto, conseguiu fazer fogo e cozinhar seu alimento, transformando-o em comida. Por isto, a comida é elemento de identidade humana e é sempre um meio de comunicação, tal qual a linguagem. Come-se por ter fome. Mas come-se, sobretudo, porque compartilhamos e comunicamos nossas experiências histórico-culturais do alimento. Costumes alimentares revelam critérios morais, laços de parentesco, tabus religiosos, classes sociais, além da memória coletiva de toda uma civilização e mudam com o tempo porque são culturais.
Continua a professora Shirley: “Se a comida é boa para pensar, as cidades também podem ser estratégicas para pensar, tanto em sua concretude quanto nos signos que carregam e transportam nos corpos e nos alimentos enquanto mediadores de relações sociais”.
Sobretudo porque cidades são, cada vez mais, locais de comer os alimentos mais variados, preparados pelas pessoas mais variadas e comida está na alçada da cultura, acrescentaríamos nós. A importância da comida é imensa. O ato de comer é nada menos que a origem da socialização. À medida que a espécie humana se reunia para criar seus utensílios, buscar comida, plantar alimentos, e depois, comer junta, falar junta, aglomerando-se em pequenos grupos, povoados, é que se originando outro tipo de socialização: as cidades.
Estava formado, então, o homem civil, o que constrói artificialmente a própria comida: uma comida não existente na natureza, para assinalar a diferença entre natureza e cultura, segundo Massimo Montanari, em seu livro Comida Como Cultura.
Cultura e distinção: Entre os séculos XVII e XVIII, cidadãos europeus pobres, por exemplo, consumiam o pão preto, preparado com cereais considerados inferiores, como centeio, cevada e, por isto, mais barato. O pão branco feito com trigo (mais caro e raro) era consumido pelos nobres. Havia o pão da pobreza e o pão da riqueza. Mas isso mudou. Nos dias atuais, os pães feitos de grãos integrais são mais caros e indicados como mais saudáveis. Outro exemplo de como o alimento nos imprime sua marca e seu valor é o arroz branco no Brasil. Trazido e consumido pelos portugueses do Brasil-Colônia, era considerado um alimento de pessoas de posse e distinção, segundo nos informa Luís da Câmara Cascudo em seu História da Alimentação no Brasil. Hoje, o arroz perdeu sua pompa, tornando-se acompanhamento. Há, inclusive a expressão ‘arroz de festa’, referindo-se a quem está em todas, sem distinção. Isto porque é a vida social que organiza os estilos e a estética da alimentação. O gosto está imbricado neste processo e é também cultural. Atos rotineiros, por exemplo, como usar a faca para passar manteiga no pão, comer o jantar salgado e depois a sobremesa doce representam a adoção de regras, costumes e hábitos de dada sociedade, que seguimos automaticamente. Entranhados que está em nós a cultura da comida e do alimento.
A coletânea resulta de parceria entre o Laboratório de Avaliação e Pesquisa Qualitativa em Saúde (LAPQS) da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC), o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Alimentação e Cultura (Nepac) da Escola da Nutrição da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e o Núcleo de Estudos sobre Cultura e Alimentação (Nectar).
Imagens: Internet.