ANO NOVO

ANNONOVVO

Literatura é bom pra vista deseja um 2020 com muitos livros, muitas culturas e, claro, entre elas, a literatura, publicando o poema Ano Novo, de Fernando Pessoa (1888-1935):

O primeiro poema é de Fernando Pessoa, chama-se “Ano Novo” e são estes seus versos:

 

Ficção de que começa alguma coisa!

Nada começa: tudo continua.

Na fluida e incerta essência misteriosa

Da vida, flui em sombra a água nua.

Curvas do rio escondem só o movimento.

O mesmo rio flui onde se vê.

Começar só começa em pensamento.

 

MUITAS VOZES É BOM PRA TUDO

muitas vozes

Novo número da Revista Muitas Vozes na praça. Acesse https://www.revistas2.uepg.br/index.php/muitasvozes/about

A revista Muitas Vozes é uma publicação semestral do Programa de Pós-Graduação em Linguagem, Identidade e Subjetividade, da Universidade Estadual de Ponta Grossa, que se constitui em um espaço de reflexão sobre questões de linguagem em suas múltiplas manifestações, sendo sua missão divulgar artigos, resenhas,  documentos relevantes para os estudos de linguagem.

 

ESSE OFÍCIO DO VERSO

esse oficio do verso

Nesta semana, Literatura é bom pra vista abordou um pouquinho a obra do escritor argentino Jorge Luis Borges (1899-1986). Na publicação de ontem, 6/12, publicamos o conto A biblioteca de Babel. Hoje, vamos postar trechos do livro Esse ofício do verso, composto por palestras proferidas pelo autor em 1967-68, na Universidade de Harvard. Um dos maiores escritores latino-americanos, Borges nos conduz à sutileza da poesia, da metáfora e da esperança, produzindo artesanalmente literatura. Até porque é a literatura o assunto mais recorrente de Borges. Vamos nos deliciar, então, com trechos d´Esse Ofício do Verso:

“Toda vez que me deparo com uma página em branco, sinto que tenho de redescobrir a literatura para mim mesmo.”

“Dediquei a maior parte de minha vida à literatura é so posso lhes oferecer dúvidas”.

“Passemos à poesia; passemos à vida. E a vida, tenho certeza, é feita de poesia. A poesia não é alheia – a poesia – está logo ali, à espreita. Pode saltar sobre nós a qualquer instante”.

borges biblioteca

“Às vezes, olhando os muitos livros que tenho em casa, sinto que morrerei antes que chegue ao fim deles, porém não consigo resistir à tentação de adquirir novos”.

“Os antigos, quando falavam de um poeta — um ‘fazedor’ —, pensavam nele não somente como quem profere essas agudas notas líricas, mas também como quem narra uma história. Uma história na qual todas as vozes da humanidade podem ser encontradas — não somente a lírica, a pesarosa, a melancólica, mas também as vozes da coragem e da esperança”.

Fotos: Internet

Leia mais sobre Borges e sua obra:

http://www.uel.br/pos/letras/EL/vagao/EL13-Art20.pdf

http://www.revistaestante.fnac.pt/quem-foi-jorge-luis-borges/

A BIBLIOTECA DE BABEL

BIBLIOTECA DE babel

 

Literatura é bom pra vista vem tratando de bibliotecas e disponibiliza o conto A Biblioteca de Babel, de Borges. O nome, por si só,  já uma potência: Jorge Francisco Isidoro Borges Acevedo (1899-1986). As funções que exerceu, várias: ensaísta, poeta, tradutor, bibliotecário, crítico literário, professor de Literatura, argentino, morador da Suíça, escritor de sonhos, de literatura fantástica, labirintos. De e sobre bibliotecas. Literatura é bom pra vista publica o conto A Biblioteca de Babel, uma biblioteca universal que conteria todos os livros do mundo, bem como todas as letras do mundo e suas possíveis combinações. Borges foi homenageado pelo também escritor Humberto Eco no romance O Nome da Rosa, com o personagem Jorge de Burros, que praticamente vivia numa biblioteca em um mosteiro da Idade Média, e era cego, tal como Borges foi se tornando ao longo da vida.

A Biblioteca de Babel

O universo (que outros chamam a Biblioteca) compõe-se de um número indefinido, e talvez infinito, de galerias hexagonais, com vastos poços de ventilação no centro, cercados por balaustradas baixíssimas. De qualquer hexágono, vêem-se os andares inferiores e superiores: interminavelmente.

A distribuição das galerias é invariável. Vinte prateleiras, em cinco longas estantes de cada lado, cobrem todos os lados menos dois; sua altura, que é a dos andares, excede apenas a de um bibliotecário normal.

Uma das faces livres dá para um estreito vestíbulo, que desemboca em outra galeria, idêntica à primeira e a todas. À esquerda e à direita do vestíbulo, há dois sanitários minúsculos. Um permite dormir em pé; outro, satisfazer as necessidades físicas. Por aí passa a escada espiral, que se abisma e se eleva ao infinito.

No vestíbulo ha um espelho, que fielmente duplica as aparências. Os homens costumam inferir desse espelho que a Biblioteca não é infinita (se o fosse realmente, para quê essa duplicação ilusória?), prefiro sonhar que as superfícies polidas representam e prometem o infinito…

BORGES PINTURA

A luz procede de algumas frutas esféricas que levam o nome de lâmpadas. Há duas em cada hexágono: transversais. A luz que emitem é insuficiente, incessante. Como todos os homens da Biblioteca, viajei na minha juventude; peregrinei em busca de um livro, talvez do catálogo de catálogos; agora que meus olhos quase não podem decifrar o que escrevo, preparo-me para morrer; a poucas léguas do hexágono em que nasci.

Morto, não faltarão mãos piedosas que me joguem pela balaustrada; minha sepultura será o ar insondável; meu corpo cairá demoradamente e se corromperá e dissolverá no vento gerado pela queda, que é infinita. Afirmo que a Biblioteca é interminável.

Os idealistas argúem que as salas hexagonais são uma forma necessária do espaço absoluto ou, pelo menos, de nossa intuição do espaço. Alegam que é inconcebível uma sala triangular ou pentagonal. (os místicos pretendem que o êxtase lhes revele uma câmara circular com um grande livro circular de lombada contínua, que siga toda a volta das paredes; mas seu testemunho é suspeito; suas palavras, obscuras. Esse livro cíclico é Deus). Basta-me, por ora, repetir o preceito clássico: “A Biblioteca é uma esfera cujo centro cabal é qualquer hexágono, cuja circunferência é inacessível”.

A cada um dos muros de cada hexágono correspondem cinco estantes; cada estante encerra trinta e dois livros de formato uniforme; cada livro é de quatrocentas e dez páginas; cada página, de quarenta linhas; cada linha, de umas oitenta letras de cor preta.

Também há letras no dorso de cada livro; essas letras não indicam ou prefiguram o que dirão as páginas. Sei que essa inconexão, certa vez, pareceu misteriosa. Antes de resumir a solução (cuja descoberta, apesar de suas trágicas projeções, é talvez o fato capital da história), quero rememorar alguns axiomas.

O primeiro: a Biblioteca existe ab aeterno. Dessa verdade cujo corolário imediato é a eternidade futura do mundo, nenhuma mente razoável pode duvidar. O homem, o imperfeito bibliotecário, pode ser obra do acaso ou dos demiurgos malévolos; o Universo, com seu elegante provimento de prateleiras, de tomos enigmáticos, de infatigáveis escadas para o viajante e de latrinas para o bibliotecário sentado, somente pode ser obra de um deus.

Para perceber a distância que há entre o divino e o humano, basta comparar esses rudes símbolos trémulos que minha falível mão garatuja na capa de um livro, com as letras orgânicas do interior: pontuais, delicadas, negríssimas, inimitavelmente simétricas.

O segundo: O número de símbolos ortográficos é vinte e cinco[1]. Essa comprovação permitiu, depois de trezentos anos, formular uma teoria geral da Biblioteca e resolver satisfatoriamente o problema que nenhuma conjectura decifrara: a natureza disforme e caótica de quase todos os livros.

Um, que meu pai viu em um hexágono do circuito quinze noventa e quatro, constava das letras M C V perversamente repetidas da primeira linha ate à última. Outro (muito consultado nesta área) é um simples labirinto de letras, mas a página penúltima diz Oh, tempo tuas pirâmides.

Já se sabe: para uma linha razoável com uma correta informação, há léguas de insensatas cacofonias, de confusões verbais e de incoerências. (Sei de uma região montanhosa cujos bibliotecários repudiam o supersticioso e vão costume de procurar sentido nos livros e o equiparam ao de procurá-lo nos sonhos ou nas linhas caóticas da mão… Admitem que os inventores da escrita imitaram os vinte e cinco símbolos naturais, mas sustentam que essa aplicação é casual, e que os livros em si nada significam. Esse ditame, já veremos, não é completamente falaz).

Durante muito tempo, acreditou-se que esses livros impenetráveis correspondiam a línguas pretéritas ou remotas. É verdade que os homens mais antigos, os primeiros bibliotecários, usavam uma linguagem assaz diferente da que falamos agora; é verdade que algumas milhas à direita a língua é dialetal e que noventa andares mais acima é incompreensível.

Tudo isso, repito-o, é verdade, mas quatrocentas e dez páginas de inalteráveis M C V não podem corresponder a nenhum idioma, por dialetal ou rudimentar que seja. Uns insinuaram que cada letra podia influir na subsequente e que o valor de M C V na terceira linha da página 71 não era o que pode ter a mesma série noutra posição de outra página, mas essa vaga tese não prosperou. Outros pensaram em criptografias; universalmente essa conjectura foi aceite, ainda que não no sentido em que a formularam seus inventores.

Há quinhentos anos, o chefe de um hexágono superior[2] deparou com um livro tão confuso quanto os outros, porém que possuía quase duas folhas de linhas homogêneas. Mostrou o seu achado a um decifrador ambulante, que lhe disse que estavam redigidas em português; outros lhe afirmaram que em iídiche. Antes de um século pôde ser estabelecido o idioma: um dialeto samoiedo-lituano do guarani, com inflexões de árabe clássico.

Também decifrou-se o conteúdo: noções de análise combinatória, ilustradas por exemplos de variantes com repetição ilimitada. Esses exemplos permitiram que um bibliotecário de gênio descobrisse a lei fundamental da Biblioteca. Esse pensador observou que todos os livros, por diversos que sejam, constam de elementos iguais: o espaço, o ponto, a vírgula as vinte e duas letras do alfabeto.

Também alegou um fato que todos os viajantes confirmaram: “Não há, na vasta Biblioteca, dois livros idênticos”. Dessas premissas incontrovertíveis deduziu que a Biblioteca é total e que suas prateleiras registram todas as possíveis combinações dos vinte e tantos símbolos ortográficos (numero, ainda que vastíssimo, não infinito), ou seja, tudo o que é dado expressar: em todos os idiomas.

Tudo: a história minuciosa do futuro, as autobiografias dos arcanjos, o catálogo fiel da Biblioteca, milhares e milhares de catálogos falsos, a demonstração da falácia desses catálogos, a demonstração da falácia do catalogo verdadeiro, o evangelho gnóstico de Basilides, o comentário desse evangelho, o comentário do comentário desse evangelho, o relato verídico de tua morte, a versão de cada livro em todas as línguas, as interpolações de cada livro em todos os livros; o tratado que Beda pôde escrever (e não escreveu) sobre a mitologia dos saxões, os livros perdidos de Tácito.

Quando se proclamou que a Biblioteca abarcava todos os livros, a primeira impressão foi de extravagante felicidade. Todos os homens sentiram-se senhores de um tesouro intacto e secreto. Não havia problema pessoal ou mundial cuja eloquente solução não existisse: em algum hexágono. o Universo estava justificado, o Universo bruscamente usurpou as dimensões ilimitadas da esperança.

Naquele tempo falou-se muito das Vindicações: livros de apologia e de profecia, que para sempre vindicavam os actos de cada homem do Universo e guardavam arcanos prodigiosos para seu futuro. Milhares de cobiçosos abandonaram o doce hexágono natal e precipitaram-se escadas acima, premidos pelo vão propósito de encontrar sua Vindicação.

Esses peregrinos disputavam nos corredores estreitos, proferiam obscuras maldições, estrangulavam-se nas escadas divinas, jogavam os livros enganosos no fundo dos túneis, morriam despenhados pelos homens de regiões remotas. Outros enlouqueceram… As Vindicações existem (vi duas que se referem a pessoas do futuro, a pessoas talvez não imaginarias) mas os que procuravam não recordavam que a possibilidade de que um homem encontre a sua, ou alguma pérfida variante da sua, é computável em zero.

Também se esperou então o esclarecimento dos mistérios básicos da humanidade: a origem da Biblioteca e do tempo. É verosímil que esses graves mistérios possam explicar-se em palavras: se não bastar a linguagem dos filósofos, a multiforme Biblioteca produzirá o idioma inaudito que se requer e os vocabulários e gramáticas desse idioma. Faz já quatro séculos que os homens esgotam os hexágonos…

Existem investigadores oficiais, inquisidores. Eu os vi no desempenho de sua função: chegam sempre estafados; falam de uma escada sem degraus que quase os matou; falam de galerias e de escadas com o bibliotecário; ás vezes, pegam o livro mais próximo e o folheiam, á procura de palavras infames. Visivelmente, ninguém espera descobrir nada.

A desmedida esperança, sucedeu, como e natural, uma depressão excessiva. A certeza de que alguma prateleira em algum hexágono encerrava livros preciosos e de que esses livros preciosos eram inacessíveis afigurou-se quase intolerável. Uma seita blasfema sugeriu que cessassem as buscas e que todos os homens misturassem letras e símbolos, até construir, mediante um improvável dom do acaso, esses livros canônicos.

As autoridades viram-se obrigadas a promulgar ordens severas. A seita desapareceu, mas na minha infância vi homens velhos que demoradamente se ocultavam nas latrinas, com alguns discos de metal num fritilo proibido, e debilmente arremedavam a divina desordem.

Outros, inversamente, acreditaram que o primordial era eliminar as obras inúteis. Invadiam os hexágonos, exibiam credenciais nem sempre falsas, folheavam com fastio um volume e condenavam prateleiras inteiras: a seu furor higiênico, ascético, deve-se a insensata perda de milhões de livros. Seu nome é execrado, mas aqueles que deploram os “tesouros” destruídos por seu frenesi negligenciam dois fatos notórios.

Um: a Biblioteca é tão imensa que toda redução de origem humana resulta infinitesimal. Outro: cada exemplar é único, insubstituível, mas (como a Biblioteca é total) há sempre várias centenas de milhares de fac-símiles imperfeitos: de obras que apenas diferem por uma letra ou por uma virgula. Contra a opinião geral, atrevo-me a supor que as consequências das depredações cometidas pelos Purificadores foram exageradas graças ao horror que esses fanáticos provocaram. Urgia-lhes o delírio de conquistar os livros do Hexágono Carmesim: livros de formato menor que os naturais; onipotentes, ilustrados e mágicos.

Também sabemos de outra superstição daquele tempo: a do Homem do Livro. Em alguma estante de algum hexágono (raciocinaram os homens) deve existir um livro que seja a cifra e o compêndio perfeito de todos os demais: algum bibliotecário o consultou e é análogo a um deus.

Na linguagem desta área persistem ainda vestígios do culto desse funcionário remoto. Muitos peregrinaram á procura d’Ele. Durante um século trilharam em vão os mais diversos rumos. Como localizar o venerado hexágono secreto que o hospedava? alguém propôs um método regressivo: Para localizar o livro A, consultar previamente um livro B, que indique o lugar de A; para localizar o livro B, consultar previamente um livro C, e assim até o infinito…

Em aventuras como essas, prodigalizei e consumi meus anos. Não me parece inverosímil que em alguma prateleira do Universo haja um livro total; rogo aos deuses ignorados que um homem – um só, ainda que seja há mil anos! – o tenha examinado e lido. Se a honra e a sabedoria e a felicidade não estão para mim, que sejam para outros. Que o céu exista, embora meu lugar seja o inferno. Que eu seja ultrajado e aniquilado, mas que num instante, num ser, Tua enorme Biblioteca Se justifique.

Afirmam os ímpios que o disparate é normal na Biblioteca e que o razoável (e mesmo a humilde e pura coerência) é quase milagrosa exceção. Falam (eu o sei) de “a Biblioteca febril, cujos fortuitos volumes correm o incessante risco de transformar-se em outros e que tudo afirmam, negam e confundem como uma divindade que delira”.

Essas palavras, que não apenas denunciam a desordem mas que também a exemplificam, provam, evidentemente, seu gosto péssimo e sua desesperada ignorância. De fato, a Biblioteca inclui todas as estruturas verbais, todas as variantes que permitem os vinte e cinco símbolos ortográficos, porém nem um único disparate absoluto. Inútil observar que o melhor volume dos muitos hexágonos que administro intitula-se Trono Penteado, e outro A Cãibra de Gesso e outro Axaxaxas mlö.

Essas proposições, à primeira vista incoerentes, sem dúvida são passíveis de uma justificativa criptográfica ou alegórica; essa justificativa é verbal e, ex hypothesi, já figura na Biblioteca. Não posso combinar certos caracteres que a divina Biblioteca não tenha previsto e que em alguma de suas línguas secretas não contenham um terrível sentido. Ninguém pode articular uma sílaba que não esteja cheia de ternuras e de temores; que não seja em alguma dessas linguagens o nome poderoso de um deus. Falar é incorrer em tautologias.

Esta epístola inútil e palavrosa já existe num dos trinta volumes das cinco prateleiras de um dos incontáveis hexágonos – e também sua refutação. (Um numero n de linguagens possíveis usa o mesmo vocabulário; em alguns, o símbolo biblioteca admite a correta definição ubíquo e perdurável sistema de galerias hexagonais, mas biblioteca é pão ou pirâmide ou qualquer outra coisa, e as sete palavras que a definem tem outro valor. Você, que me lê, tem certeza de entender minha linguagem?)

A escrita metódica distrai-me da presente condição dos homens. A certeza de que tudo está escrito nos anula ou nos fantasmagórica. Conheço distritos em que os jovens se prostram diante dos livros e beijam com barbárie as páginas, mas não sabem decifrar uma única letra.

As epidemias, as discórdias heréticas, as peregrinações que inevitavelmente degeneram em bandoleirismo, dizimaram a população. Acredito ter mencionado os suicídios, cada ano mais frequentes. Talvez me enganem a velhice e o temor, mas suspeito que a espécie humana – a única – está por extinguir-se e que a Biblioteca perdurará: iluminada, solitária, infinita, perfeitamente imóvel, armada de volumes preciosos, inútil, incorruptível, secreta.

Acabo de escrever infinita. Não interpolei esse adjetivo por costume retórico; digo que não é ilógico pensar que o mundo é infinito. Aqueles que o julgam limitado postulam que em lugares remotos os corredores e escadas e hexágonos podem inconcebivelmente cessar – o que é absurdo. Aqueles que o imaginam sem limites esquecem que os abrange o número possível de livros.

Atrevo-me a insinuar esta solução do antigo problema: A Biblioteca é ilimitada e periódica. Se um eterno viajante a atravessasse em qualquer direção, comprovaria ao fim dos séculos que os mesmos volumes se repetem na mesma desordem (que, reiterada, seria uma ordem: a Ordem). Minha solidão alegra-se com essa elegante esperança.

[1] expressão popular para resplendor.

[2] Mesmo que gupiara, depósito de diamantes.

Fotos: Internet

Fontes: http://www.revistaestante.fnac.pt/quem-foi-jorge-luis-borges/

http://site.ufvjm.edu.br/cafeliterario/a-biblioteca-de-babel-jorge-luis-borges/

 

 

 

 

IDA, UM ROMANCE

 

Gertrud

 “Ida Um romance”, de Gertrude Stein,  inédita no Brasil, é obra inspirada na figura da Duquesa de Windsor.  Combina técnicas de montagem cinematográfica e colagem cubista para pensar a obsessão da sociedade americana pela fama. Escrito nos anos finais da década de 1930, quando Gertrude Stein (1874-1946) já era uma celebridade, “Ida Um romance” chega ao Brasil, editado pela Pontoedita e traduzido por Luís Protásio, é um comentário sobre a cultura da fama e o tema da identidade. Com apresentação da cantora Badi Assad e do ator e dramaturgo Luiz Päetow, reúne nove composições inéditas de Stein – entre elas as influentes conferências “Como a escrita é escrita” e “O que são obras-primas” -, um texto clássico de Sherwood Anderson apresentando a escritora e um posfácio do tradutor comentando a tradução.

 

Publicado em 1941, “Ida Um romance” combina técnicas de montagem cinematográfica e colagens cubistas numa narrativa com tons de fábula para criar uma personalidade pública tão pública a ponto de não existir mais personalidade. Descrito à época pelo New York Times como “romance curto, poema longo ou conto de fadas moderno; ou, ainda, uma pintura com palavras que lembra mais Dali do que Picasso”, o livro retrata como a religião foi substituída pelo culto às personalidades públicas e mostra as inquietações de Stein diante de sua relação com a literatura, os leitores e a crítica. Inspirada em Wallis Simpson, a figura no centro da crise que levou Eduardo VIII a abdicar ao trono do Reino Unido em 1936, Ida, a personagem que dá nome ao romance, assim como a Duquesa de Windsor, encarna o modelo de celebridade — um lugar ocupado, em meados do século XX, por estrelas de cinema, artistas famosos, generais de guerra e psicopatas e, hoje, por influenciadores.

Com aspectos de romance de formação e traços autobiográficos, a narrativa acompanha a trajetória de Ida, uma mulher cuja vida consiste em descansar, passear, falar sozinha, mudar-se, ter vários cachorros, ter vários maridos. Em alguns momentos, o texto lembra uma ladainha, uma oração, na medida em que as palavras, esvaziadas do sentido semântico esperado, criam uma escrita não referencial que aproxima a experiência do leitor à experiência da música. Ao comentar o fraseio steiniano na crônica poética em que apresenta o livro, a cantora Badi Assad o descreve como “uma mistura de Guimarães Rosa com Saramago, Manoel de Barros com Forrest Gump, além do russo Daniil Kharms, com suas histórias que viram de ponta cabeça qualquer criança descuidada”.

Ao combinar Helena de Troia, Dulcineia, Greta Garbo e a Duquesa de Windsor, como sugere o crítico Donald Sutherland, Gertrude Stein cria uma mulher não definida por sua relação com um homem (em que é a esposa, a amante, a filha), com outra mulher (em que é a amiga, a lésbica) ou com uma instituição (em que é a judia, a americana, a expatriada). Ida é a representação da “mulher do fim do mundo”, que não se conforma a padrões pré-definidos e luta pelo direito de ser o que ela desejar ser. O que define a identidade de Ida é, para usar uma imagem de Badi Assad, sua relação com o próprio eu distraído diante de tudo isso e da atenção dos outros.

A inconformidade de Ida é registrada nos usos que Stein faz da linguagem. A pontuação é reduzida ao mínimo e a vírgula, que desempenha o papel de dois pontos, ponto e vírgula, travessão e aspas, engaja o leitor na construção das frases e dos sentidos das frases e enseja um texto carregado de ambiguidade criadora, como observa Luís Protásio no posfácio da edição.

O projeto gráfico criado pela Pontoedita considerou esses aspectos para conceber o livro como um objeto que questiona a própria identidade do livro e mimetiza instâncias da fama. Os textos de abertura — a crônica poética da cantora Badi Assad e uma cápsula teatral do ator, diretor e dramaturgo Luiz Päetow, estudioso da obra de Stein — são impressos em uma lâmina que só os revela à medida que é desdobrada, oferecendo uma experiência concreta que prepara o leitor para a aventura no labirinto poético do texto de Stein.

Ida

 

O formato, estreito e alto, remete a uma coluna de jornal por onde os acontecimentos da vida de Ida desfilam como um cortejo de notícias, fofocas e lembranças cujo contraponto é uma paleta de cores luminosas. A disposição do texto, alinhado à esquerda, traduz de forma gráfica o fraseio da prosa e embala o padrão rítmico irregular ao mesmo tempo em que remete à sinuosidade do texto poético.

A edição inclui também fotografias de Carl Van Vechten e desenhos do multiartista brasileiro Pedro Monfort, que assina a capa do volume: uma versão totêmica de Basket, o icônico poodle de Stein e Toklas.

A versão exclusiva contendo fotografias extras de Van Vechten encartadas no miolo, um pôster com um texto extra (também inédito) de Stein e um marca página especial está sendo vendida unicamente pelo site da editora (www.pontoedita.com) e enviada na caixa serigrafada da Pontoedita.

Fotos: internet